O grande desafio está na definição de valores e critérios sobre ética e até onde vai o conflito de interesses
“A ética precisa estar na base da transformação digital”, anuncia David Kallás, vice-presidente de administração da ANEFAC, sócio da KC&D e professor do Insper e da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. Para ele, ela traz um mundo completamente novo e surgem então os dilemas éticos, que podem ser em várias categorias, desde o impacto em pessoas, no poder de decisão e o impacto delas, na confiança, no vazamento de dados e na privacidade e por aí vai. O assunto foi o tema central do Congresso ANEFAC Digital e abordado em um painel interativo no dia 29 de maio. Ao complementar, Carlos Caldeira, sócio da KC&D e professor do Insper, atesta que a era digital pode abrir novas situações de dilemas éticos, e mesmo que semelhantes as anteriores, vão ter que ser discutidas. Se um carro atropela um pedestre, o motorista é o responsável. Agora e se um carro autônomo faz o mesmo? O programador? O dono do carro? O fabricante? Muitas perguntas a serem respondidas ainda em nossa sociedade.
É importante que se garanta que os aspectos relacionados aos dilemas éticos não sejam negligenciados pelas organizações, porque podem vir consequências indesejáveis pela frente. De acordo com Kallás, no fundo a transformação digital é muito interessante, mas precisa estabelecer limites e critérios para esses limites, que deverão ser embasados em várias fontes e autores existentes, mas mesmo assim ainda haverá a subjetividade, por isso, nesse ponto, a empresa precisa saber com muita clareza quais são os seus valores e criticá-los velozmente.
Na visão de Roberto Fragoso, vice-presidente adjunto de tributos da ANEFAC e sócio do Perez Fragoso Advogados: “a ética é um comportamento humano para o bem, devendo estar intrinsecamente ligada ao agir, indistintamente se temos uma ferramenta digital, que nos ajuda a realizar melhor as nossas tarefas. A transformação digital não muda a forma do ser humano tratar outro ser humano, sob pena de concordarmos que a escravidão pode existir pelo “novo normal”. As relações humanas não mudam e não poderiam mudar, pois esta é a natureza humana. Além disso: é se o limite da ética é a lei. Será? A lei é incontestavelmente um excelente parâmetro, um começo importante, mas isso não basta. Veja, por exemplo, as regras de respeito ao meio ambiente, que algumas empresas possuem. São muito mais severas que a própria lei, o que as coloca em posição ética neste quesito. O mesmo raciocínio pode ser adotado para as demais atividades realizadas pelos contadores, advogados etc.”, diz.
Ainda que os problemas da ética empresarial não tenham começado com a era digital, mas de fato se percebe que houve um aumento com relação à esta preocupação. Na verdade, Cláudio Luís C. Larieira, professor do TDS (Departamento de Tecnologia e Ciência de Dados) da FGV EAESP, que também palestrou no evento, avalia que os problemas com a ética surgem a cada vez que há uma nova tecnologia, que de alguma maneira possa ser usada para extrapolar os limites dos indivíduos em sua liberdade, privacidade, interesses pessoais ou profissionais. Com isso, ele explica: quando existe uma nova tecnologia digital, como por exemplo, aplicações de inteligência artificial ou adoção de novos dispositivos, que sejam invasivos, vem à tona a discussão do quanto esta tecnologia pode ferir a ética empresarial, seja na forma com que propõe produtos e/ou serviços, utilizam a tecnologia e na maneira como os indivíduos, o governo ou outras empresas percebem o impacto do seu uso. “Atualmente se tem falado sobre a implantação de microchips nos recém nascidos. No futuro cada pessoa terá um banco de dados implantado em seu corpo que conterá informações sobre seus históricos médico, escolar, profissional, de crédito etc. que poderão ser acessados por dispositivos que leiam este microchip. Com isso, vem a questão: deveria uma empresa utilizar estes dados, mesmo que não fosse autorizada pelas pessoas? Este é só um exemplo de como a ética empresarial precisará ser repensada, considerando os avanços tecnológicos que estão ocorrendo recentemente”, adverte.
A ética deve andar em paralelo com as decisões sobre a transformação digital, acredita Caldeira. E alerta: ainda que uma tecnologia se mostre tecnicamente viável, com bons resultados financeiros e econômicos, pode ser que do ponto de vista ético não seja tão viável assim. “Por exemplo, atualmente a inteligência artificial já permite que se faça reconhecimento facial dos indivíduos nas ruas. Se podemos fazer isto para identificar potenciais criminosos, o que impede de as empresas investirem neste tipo de tecnologia e aplicá-lo para reconhecer nas lojas as pessoas que têm crédito negativo e assim informar aos lojistas em quem devem investir mais tempo atendendo ou não em sua loja? Veja que o uso da tecnologia é praticamente o mesmo, a diferença é que no primeiro caso se justifica porque preserva a segurança da sociedade, mas no segundo pode ser prejudicial aos indivíduos que precisam comprar produtos, mas não possuem um crédito bom. Assim, na avaliação de uma nova tecnologia digital é fundamental avaliar se fere a ética empresarial, mais do que isto, se fere a ética de uma certa sociedade em um certo momento”, ressalta.
Por sua vez, podemos considerar que estamos vivendo uma era digital, que foi gradativamente preparada nas últimas décadas, com a criação de ferramentas para processamento de informações nunca antes pensada, que foram testadas ao limite por força da pandemia e se percebeu que temos condições de mudar nossa forma de trabalhar. Na percepção de Fragoso, o home office, que antes era testado e com olhos de desconfiança, hoje é determinado como forma de sobrevivência. Já a era digital nos coloca diversos novos dilemas, mas sempre relacionados ao comportamento humano e o digital, junto com o receio do contato físico nos retira a possibilidade da proximidade, do contato humano. “Outra questão a ser observada é sobre os colaboradores que estão trabalhando em casa sem a possibilidade de controle de trabalho, bem como os que sequer têm o direito ao pagamento de horas extras. É possível que tais indivíduos recebem carga desproporcional de trabalho pelo fato das reduções dos quadros, aumento do trabalho pela impossibilidade de converter o ambiente corporativo que existia na empresa, bem como a difícil prova das horas extras. A privacidade é também um problema. As câmeras de vídeo invadem todos os lugares, em todos os momentos, e esta invasão é no espaço mais íntimo, o lar. Tratar tais problemas requererá um esforço muito grande. Reuniões que tinham pouca interferência externa, passam a contar com crianças chorando, cachorros latindo, aspiradores de pó, enfim, uma diversidade de sons e imagens que não eram sequer pensadas há alguns meses”, elucida.
Ética e transparência nas empresas
Para Fragoso, a transparência é uma qualidade que se apresenta sem ressalvas, sem pontos escondidos, sem segredos. Segundo ele, quando falamos em empresas, e mais ainda tomando como parâmetro a atividade da ANEFAC e nossos associados, podemos colocar em perspectiva o “true and fair view”, princípio contábil que se apresenta como norteador dos registros contábeis da operação. “Ser transparente é apresentar os dados da empresa tão fiéis que não sejam nem em excesso nem em falta. A visão verdadeira tem como pressuposto a essência do fato e, esta essência significa aquilo que a coisa é e não poderia ser de outra forma e isso não é simples de se obter, mas requer técnica refinada pelas complexidades corporativas e dificuldade de se desvelar tal elemento”, salienta.
Na mesma linha, Larieira entende que, a transparência é um dos critérios a ser considerado quando se fala em transformação digital, mas existem outros também muito relevantes, como por exemplo, a privacidade dos indivíduos e o respeito ao ser humano em suas várias dimensões. “Ainda que tecnicamente seja viável ler a mente das pessoas em alguns anos não muito distante, provavelmente as pessoas considerarão que isto não é ético, o que pode fazer com que a tecnologia nunca venha a ser de fato implementada”, alerta. Já Caldeira acredita que a ética nessa transformação digital não necessariamente está relacionada com a transparência, pois a transformação exigirá discussões, que podem ser fechadas nas organizações ou abertas. Se forem fechadas, correm o risco de não serem inclusivas. Se forem abertas, podem demorar demais.
Como os gestores devem lidar com a ética versus a transformação digital
Ao listar os desafios para os gestores com os dilemas éticos e a transformação digital, Caldeira considera três: 1 – pessoas e seu tratamento – um computador pode decidir o futuro de uma pessoa? 2 – imagem – se um drone cair sobre alguém isso pode ser muito ruim para a imagem, especialmente se os cuidados de discutir esta possibilidade não forem feitos de antemão. 3 – responsabilização ou accountability – se descobrirmos que um algoritmo é mais favorável a pessoas brancas, quem deve ser responsabilizado? “Pode ser que as empresas saibam mais do que o próprio cliente. Se meu modelo dá como muito provável a separação de um casal, posso monetizar esta informação, por exemplo, através de ofertas para pessoas recém separadas? Ou devo avisar o casal antes? Ou não posso monetizar? Devo influir, por que um casal rende mais do que pessoas separadas?”, indaga.
Como a ética é algo de difícil definição e, por consequência, de aplicação, definir o que é ético ou não já é por si só um grande desafio. Mas passada esta fase, Larieira aponta que é importante que os gestores definam com clareza quais são os critérios que devem nortear o que é potencialmente ético ou não. “Alguns critérios como privacidade, sustentabilidade, proteção ao indivíduo, integridade, entre outros, podem ser listados para entender o que fere a ética quando da adoção e uso de uma tecnologia. É fundamental que cada organização, em seu contexto de mercado e de região, avalie quais são os potenciais riscos à ética, não havendo uma verdade pronta e absoluta”, propõe. Conselhos de ética, por exemplo, podem ajudar as empresas a estabelecer códigos de conduta, assim como padrões de ética a serem seguidos e discutidos a cada nova adoção e implantação de tecnologia.
Dentre os diversos desafios, Fragoso elege dois, pois se trata de comportamento humano: a ganância e a audácia, já que ambos podem aniquilar uma empresa no curto prazo. Para o especialista, isto acontece porque muitas decisões, para aumentar os lucros, passarão por demissões massivas. “Isto não é novo. Já passamos por situações similares. O problema é se este exército de desempregados terá capacidade de se reinventar, e se os jovens, que estão em fase de ingresso no mercado de trabalho, poderão se inventar ao ponto de terem sucesso em suas carreiras. Temos que analisar se estas demissões em massa têm como causa, justificativa, a sobrevivência da empresa ou estritamente o aumento dos seus lucros. O conflito ético instaurado é simples e ao mesmo tempo de difícil solução: lucro (perpetuidade) e humanidade. Temos de reconhecer que a empresa assume os riscos do negócio e para tal, lucro é a reserva necessária, mas este balanceamento é uma questão fina, onde deve ser buscado um meio termo. Outra questão séria é a audácia, que muito se confunde com coragem, mas há apenas similaridade entre ambas, não identidade. Ser corajoso é saber fazer e fazer com excelência. Por outro lado, o audacioso é aquele que faz, mas sem saber. Tem-se iniciativa, muita iniciativa, mas não conhecimento do tema com a profundidade necessária para esta decisão. Casos não faltam”, aponta.
De acordo com ele, muitas decisões tomadas não possuem um processo científico que se justifique ou, às vezes pior, não possuem qualquer processo. Tais decisões são baseadas, por exemplo, em “sempre deu certo assim” ou pior “é o melhor para a empresa”. “Sobre o primeiro, quem tem certeza de que o passado garante o futuro? Se fosse tão fácil assim, para que serviria a ciência? O segundo é pior, pois ou é puro sofismo ou uma decisão ruim se for o próprio dono. Isto porque há probabilidade alta de prejuízo que apenas não se materializará por este erro estatístico. Alguns dos remédios conhecidos para tais patologias são: a implementação de governança, comitê fiscal entre outros, pois tem como essência ser formado por pessoas independentes, com profundos conhecimentos técnicos que ajudarão a empresa no processo decisório, e que são contratados para fazer as perguntas certas. Aliás, fazer a pergunta certa pressupõe conhecer adequadamente e profundamente o tema”, esclarece.
Um tema que é bastante importante e que passa a ser um risco representativo é o trato das informações. Isto porque, no entendimento de Fragoso, há mais facilidade para o roubo de informações sigilosas, pois são armazenadas eletronicamente, o uso de informações falsas, a invasão e o sequestro de bases de dados, redes sendo derrubadas e uma infinidade de outros problemas. Lidar com tais problemas significará uma postura ética de todos os colaboradores, que não poderão se deixar seduzir pelo caminho mais fácil para a geração de lucros, em detrimento do enorme dano gerado aos seus competidores, no caso por exemplo, de oferecimento de informações sigilosas. Daí que decisões não devem ser fundadas em vaidade, em audácia (excesso de coragem – agir sem conhecimento) e imprudência pelo fato de as informações não terem sido validadas com as fontes confiáveis. As consequências serão necessariamente o prejuízo, seja individual ou coletivo, dado o uso inadequado das ferramentas disponíveis nesta era digital.
O que é ética?
Para finalizar, Roberto Fragoso apresenta o conceito de ética: o ponto inicial é saber o que é e o que significa ética? Muito foi escrito sobre o tema nos últimos 2.500 anos e com abordagens relativamente diferentes e complementares, e em certos casos possuindo pontos em comum. Algumas escolas se diferenciam pelo entendimento que a ética varia de acordo com o momento social, atribuindo-a uma qualidade subjetiva, ou seja, ética é aquilo que o sujeito consegue perceber como bem. Como nossa capacidade de conhecer o mundo se dá pelas nossas percepções, há sempre uma subjetividade. Por outro lado, outras escolas, chamadas objetivas, frisam a existência de um bem que é eterno e absoluto. Nesta escola pressupõe a existência de uma essência do bem, e este bem não se altera indiferente de mutações de costumes sociais numa determinada região e espaço de tempo. Por sua vez um ponto em comum nas escolas é que seu objeto é o bem, assim como a estética busca o belo e a lógica, o verdadeiro. Uma categorização válida da ética foi dada na época antiga e retratada em Aristóteles em sua “Ética a Nicômaco”. Das virtudes importantes que o cidadão deveria possuir para ser um bom cidadão eram as mais importantes: a temperança, a coragem, a justiça e a prudência.
O conteúdo da palestra está disponível no Educa ANEFAC, confira: