Tecnologia possibilitou, ao Fisco, cruzamento das informações tributárias e contábeis numa velocidade e complexidade ainda maiores. Investimento das empresas deve ser em inovação e maior eficiência da função fiscal
O Brasil é um dos países com maior número de tributos. Só para se ter ideia, ao longo dos últimos anos, a carga tributária tem representado algo em torno de 35% do PIB. Por conta da autuação fiscal, o empresário precisa gerenciar este impacto em seu negócio sob pena de perda de rentabilidade, competitividade ou desembolso de caixa inesperado. Na visão de Edinilson Apolinário, vice-presidente de tributos da ANEFAC, juiz substituto do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP) e sócio do Austin Associados, diante desse cenário, torna-se mandatória a busca por inovação e maior eficiência da função fiscal no ambiente empresarial. “Visando aumentar a qualidade da informação fiscal, um dos principais instrumentos utilizados pelas empresas é a automatização de diversas atividades repetitivas, realocando o esforço dos profissionais para a análise e não na mera geração de dados”, explica. O especialista, juntamente com Emerson Melo, sócio líder da prática de compliance da KPMG, e Roberto Biava, professor na área tributária contábil no SENAC, FIPECAFI e FUNDACE, conduziram o conteúdo do simpósio da ANEFAC Compliance series: Visão tributária e compliance no contexto da Covid-19, no dia 25 de agosto, que abordou essas questões.
O Banco Mundial realiza anualmente a pesquisa “Doing Business”, Edinilson foi um dos colaboradores por quatro anos em relação ao “Chapter Brazil”. Um importante foco do estudo é medir o tempo gasto pelas empresas no cumprimento de obrigações fiscais requeridas pelo Fisco. O Brasil sempre foi o último colocado neste quesito, tendo figurado por muito tempo na série histórica com gasto anual de 2.600 horas e nas pesquisas mais recentes ficando no patamar de 1.500 horas, ainda assim muito longe da média global, que gira em torno de 300 horas.
Com a digitalização do complexo ambiente tributário brasileiro, trazida pelo Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), surgiram grandes desafios para as empresas sob a perspectiva de tecnologia, processos, estrutura e pessoas, uma vez que o volume e detalhamento das informações, requeridas pelo Fisco, aumentaram exponencialmente. Segundo o vice-presidente da ANEFAC, muitas empresas que não investiram na gestão da função fiscal, seja por considerarem não estratégica ou, simplesmente, por terem direcionado o caixa para outras demandas do negócio, tiveram grandes dificuldades e, em muitos casos, sofreram imposição de multas fiscais elevadíssimas ou até tiveram suspensão temporária de atividades.
No entendimento de Roberto, o SPED contábil e fiscal gera um banco de dados poderoso de modo que os negócios e operações já não são somente fotografados em momentos específicos e sim filmados o tempo todo. Para o fisco, a contabilidade se apresenta como um grande repositório de informações e documentos, cuja compreensão técnica, principalmente no aspecto contábil, pelo corpo de fiscalização de tributos, aliada à complexidade do mundo dos negócios e à necessidade de verificação da conformidade das obrigações fiscais é imprescindível. “Falando em relação à perspectiva dos Fiscos, nos processos de auditoria tributária: o intercruzamento de dados do SPED contábil e fiscal, entre os Fiscos das várias esferas aumenta “sem sombra de dúvidas” a possibilidade de lavratura de autuações por parte deles, podendo abrir caminho para as autuações mais eletrônicas, dentro do prazo decadencial, quando é detectado que determinado contribuinte eletronicamente não recolheu o tributo ou efetuou o recolhimento a menor.
De acordo com Edinilson, o projeto SPED evoluiu ao longo dos anos e, atualmente, congrega obrigações fiscais, contábeis e previdenciárias com níveis de informações bem detalhadas. As trocas de informações entre os Fiscos, inclusive de outros países, o uso inteligente de tecnologia e a capacitação dos agentes fiscais tem aumentado, substancialmente, a quantidade e qualidade das auditorias realizadas pelas autoridades fazendárias dos diferentes níveis de governo. “Na esfera federal, por exemplo, o Relatório Anual de Fiscalização 2019/2020, apresentado pela Receita Federal do Brasil (RFB), informa que foram realizadas 483 mil fiscalizações que, por sua vez, resultaram R$ 201,66 bilhões em autuações. A eficiência do Fisco, nas auditorias realizadas, pode ser observada no indicador do Grau de Aderência das Autuações que, atualmente, representa 0,84% e mede o volume de autuações mantidas até a instância administrativa”, pontua.
Já com relação aos Estados e Municípios, ele entende, que estes também aperfeiçoaram os processos fiscalizatórios, de tal forma que já podemos observar em muitos autos de infração elementos extraídos de obrigações fiscais e contábeis, obtidos por meio do compartilhamento de informações entre os diferentes Fiscos. Um exemplo disso, é a utilização de informações do SPED Contábil (“ECD”) por agentes fiscais estaduais em auditorias relacionadas ao ICMS. “Com base neste pequeno recorte, é possível concluir que a produção e envio de informações para atender as diferentes obrigações fiscais e contábeis merecem total atenção por parte das empresas, sob pena de não evitarem sanções ou controvérsias no âmbito judicial”, salienta.
Na mesma linha, Roberto, acredita que hoje, com a obrigatoriedade de entrega de obrigações acessórias por meio de arquivos digitais, os Fiscos nas três esferas (federal, estadual e municipal) passaram a ter acesso à uma infinidade de dados, de documentos fiscais, de obrigações fiscais e registros contábeis de diversas empresas, por meio de documentos digitais que possibilitam uma utilização mais ágil para fins de identificação do crédito tributário, eventualmente, suprimido pelos contribuintes, e que também em termos jurídico acaba gerando um prova muito mais precisa e mais difícil de ser contraditada na defesa do contribuinte, tanto em âmbito administrativo como judicial. “Temos vivenciado nas três esferas uma forte tendência de utilização desta ampla gama de informações eletrônicas nas autuações fiscais. Por meio de auditorias contábeis, que foram facilitadas pela disponibilização dos arquivos eletrônicos da ECD, o Fisco consegue efetuar verificações na contabilidade da empresa e, nestes casos, pode identificar situações que poderão ensejar a exigência de diversos tributos (como IRPJ, ICMS, PIS-COFINS, IPI e outros), inclusive por meio de presunções legais realizadas em levantamentos econômico-fiscais”, adverte.
A importância do compliance tributário
O termo compliance ou conformidade tributária está, automaticamente, ligado a ideia de riscos fiscais no Brasil, devido ao ambiente tributário altamente complexo. Para Roberto, o risco fiscal faz parte do risco operacional e se refere a possibilidade de perda não relacionada ao descumprimento voluntário das normas tributárias ou a intenção de sonegação por parte da empresa, mas que se dá, principalmente, por interpretação “indevida” da legislação tributária, proveniente de processos jurídicos (administrativos e judiciais) decorrentes de alguma controvérsia fiscal, ou mesmo por erros ou falhas de sistemas e controles fiscais e contábeis, que poderiam ser considerados aceitáveis, em um cenário de grande complexidade.
Segundo ele, a conformidade tributária faz parte da atividade operacional da empresa e o seu descumprimento pode trazer perdas e representar uma alta carga de risco para o compliance, já que a desconformidade tributária gera, não somente perdas econômicas e financeiras, mas também reputacionais, aquelas que impactam na imagem da empresa, no mercado acionário e em futuros negócios. “A “inteligência fiscal” do Fisco, potencializada com a implementação do SPED, impacta a rotina dos departamentos fiscais, além de ampliar o foco no risco fiscal, uma vez que o risco fiscal preexistente em face da complexidade do cenário tributário brasileiro, é ampliado e “agravado” neste novo conceito eletrônico de obrigações acessórias fiscais e contábeis, seja pelo aumento das informações que são prestadas, pelo aumento do potencial de detecção pelas auditorias e fiscalização, ou ampliando-se a possibilidade de autuação. Por isto, cada vez mais as empresas devem estar preocupadas com o “compliance tributário” e investir em controles de conformidade tributária, de modo a mitigar os riscos de autuação fiscal, que podem ocorrer inclusive por erros e incorreções involuntárias no cálculo dos tributos e no preenchimento das diversas informações contidas no SPED contábil e fiscal”, aponta.
Informações contábil-fiscais enviadas ao Fisco devem ser as mais corretas possíveis
Atualmente, as informações contábeis e fiscais não são apenas internas, de modo, que as empresas têm que estar tecnologicamente preparadas para reproduzir a sua contabilidade (escrita contábil) em documentos digitais que são disponibilizados “on-line” para o Fisco através da ECD/ SPED, bem como transmitir adequadamente todos os livros fiscais nos blocos EFD/SPED. Segundo Roberto, a ECD tem sua validade jurídica assegurada e tem o mesmo valor probante da tradicional escrita comercial em papel, sendo também autenticada (na forma de livros comerciais digitais) perante a Junta Comercial dos Estados. Portanto, quando utilizadas pelo Fisco em processos de fiscalização e auditoria tributária junto das informações fiscais EFD, a contabilidade fornece informações de grande relevância para o acompanhamento da arrecadação e para eventual autuação fiscal.
“Cada vez mais é sensível a informação fiscal e contábil que as empresas contribuintes fornecem ao Fisco. É extremamente essencial que o departamento contábil e fiscal tenha certeza de que estão transmitindo uma escrita contábil (ECD) e fiscal (EFD) livre de erros e incorreções. Isto porque, eventualmente caso sejam fornecidas informações incompletas ou com erros, isto poderá trazer dissabores tanto à empresa quanto ao Fisco, no caso de serem utilizados estes dados na construção de autuações fiscais em auditorias contábeis e tributárias; especialmente nos casos que envolvam uma autuação fiscal”, alerta Roberto.
Conformidade tributária deve ser alvo das empresas
Tendo em vista que parte substancial das obrigações fiscais são apresentadas eletronicamente por meio do SPED, e como vimos esta é uma das principais fontes utilizadas pelas autoridades fazendárias no processo fiscalizatório, Edinilson entende que, torna-se fundamental que as empresas invistam na transformação da função fiscal através do uso de tecnologias como robotização de tarefas (“RPA”), “Data Analytics”, capacitação de pessoas , dentre outros vetores. Pois, o aumento da qualidade das informações diminuirá os riscos de autuações fiscais, permitirá que o colaborador possa contribuir em projetos e ações estratégicas da companhia e, adicionalmente, aumentará a motivação ao time.
Ao complementar, Roberto pontua que, as empresas contribuintes tem que ter especial atenção em evitar erros e retificações na sua escrita contábil, tendo em vista essencialmente o aspecto tributário, pois os erros contábeis não afetam apenas o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), mas também podem afetar a interpretação em relação a tributos indiretos como o ICMS-IPI-PIS-COFINS, especialmente nos casos em que o Fisco se utiliza de métodos de levantamento fiscal com base em presunções legais de omissão de operações. “Uma vez que o risco fiscal relacionado com desconformidades na obrigação acessória ou principal, envolve não apenas o cálculo incorreto do tributo para menos, o qual pode acarretar um recolhimento a menor para o Fisco com risco de autuação por parte da autoridade tributária que cobrará além do tributo, a multa tributária e os juros, mas também envolve o risco fiscal relativo ao cálculo do tributo a maior, em que a empresa fará um recolhimento tributário maior que o devido tomando em conta a interpretação do Fisco sobre aquela legislação tributária, de modo que a empresa terá um aumento de suas despesas e custos por conta da aplicação incorreta da legislação tributária e encontrará grandes óbices e custos para a repetição do indébito tributário”, salienta.
Ou seja, para ele, as empresas têm um duplo trabalho para evitar riscos tributários, pois têm que evitar autuação fiscal, mas também não podem recolher tributos a maior, já que a repetição administrativa ou judicial de valores recolhidos a maior é extremamente difícil na prática e morosa. “Deste modo, devem investir em ferramentas de compliance tributário para evitarem autuações fiscais, recolhimentos a maior de tributos, e um bom gerenciamento das informações do SPED contábil e fiscal, para evitar que erros e inconsistências de preenchimento gerem problemas nas auditorias feitas pelos Fiscos federal, estadual e municipal”, finaliza.