Racionamento de energia ainda não está 100% descartado, mas medidas adotadas geram talvez um cenário mais positivo para o futuro
A falta de chuvas e a consequente baixa dos reservatórios das hidrelétricas provou uma crise energética em 2021 no Brasil, que deverá seguir, ainda, em 2022. Isso fez com que houvesse o aumento da conta de luz, já sentida no bolso dos brasileiros. Segundo Andrew Frank Storfer, conselheiro da ANEFAC e CEO da América Energia, que palestrou no 1°Circuito de inteligência de mercado de energia da ANEFAC, realizado no dia 5 de agosto, a energia elétrica é um insumo fundamental para o setor produtivo e aumentos significativos, como foram experimentados, impactam diretamente na economia e na inflação.
Ele conta que especialmente nesta fase de recuperação que estamos ensaiando, após um período prolongado de pandemia e retração, parte da inflação galopante se deve ao aumento da energia elétrica. “Inflação alta implica em juros mais altos, mesmo que seja a por choque de oferta, que é o que está ocorrendo, pois o risco de contaminação e espalhamento é muito alto. Não podemos esquecer que eleva os juros e o crédito fica mais caro. O impacto do aumento do custo da energia elétrica é grande”, explica ele.
Para Fábio Antonio, diretor regional da ANEFAC Campinas e sócio da KPMG, que mediou o evento, a energia elétrica tem um papel fundamental no desenvolvimento da sociedade e para a economia do país, pois funciona como um termómetro. As variações climáticas de chuvas e eventos difíceis de prever podem continuar afetando a garantia de oferta de energia e toda a cadeia sofrer, mas o setor vem buscando soluções. Na mesma linha, Ailton Leite, head de economia e finanças da ANEFAC e sócio-diretor da ACL Consultoria Financeira, que participou do evento, os problemas na produção de energia afetam o Brasil inteiro, sem água sem energia, ambas estão interligadas.
Atualmente há dois mercados de energia elétrica do país: o Mercado Cativo, ou regulado, onde a distribuidora também fornece obrigatoriamente a energia, e o Mercado Livre, onde o consumidor é livre para escolher de quem comprar a energia, sendo que a distribuidora só faz a entrega. No primeiro, ou regulado, o preço da energia é dado pelos leilões periódicos promovidos pelo governo, mais o que vem de Itaipu e outros contratos. Isso é parte da conta. A outra é da entrega de energia em si, encargos e impostos, que são quase metade da conta.
“O preço da energia elétrica foi afetado pelo regime das bandeiras tarifárias, tendo até sido criada uma especial denominada “Tarifa de Escassez Hídrica”, mais alta que a bandeira vermelha, que acrescenta R$ 14,20 a cada 100 kWh consumidos. Este é o aumento para o Mercado Cativo pela crise hídrica, que é obrigatório para consumidores residenciais e para pessoas jurídicas com demanda abaixo de determinado valor, ou seja, consumidores menores”, relata Storfer.
Se a crise perdurar, o aumento refletirá nas bandeiras em 2022. No que diz respeito ao Mercado livre, opcional para empresas acima de determinada demanda, o impacto é diferente. Storfer pontua que, usualmente essas têm uma economia com relação ao Mercado Cativo, pois possuem assessoria especializada em gestão. “Não ficam expostas ao curto prazo, uma vez que possuem contratos de fornecimento de energia de longo prazo, tipicamente mais que três anos, chegando a 10 ou até 15 anos, e assim não são tão afetadas pelas variações em um determinado ano”, salienta.
Agora para aquelas que estavam mais expostas o impacto foi grande. De acordo com Storfer, o preço de energia convencional, que no ano passado durante a pandemia mais forte, estava em 160 R$/MWh para o ano de 2021 e no começo sinalizava 230 R$/MWh para o segundo semestre atingiu mais de 500 R$/MWh. “Um aumento gigantesco. Para 2022, o preço de energia no ML está girando em torno de 350 R$/MWh. Muito mais do que normalmente seria”, adverte.
Todo esse cenário acontece porque a geração de energia elétrica no Brasil é muito dependente da hidráulica. Apesar da participação dessas usinas na matriz ter saído de 87% em 2000 para 63% em 2020, ainda depende muito dos reservatórios. De 2000 a 2020 aumentou 150% da potência instalada total. Em hidráulicas 85%. Porém, na visão de Storfer, só cresceu 11% a capacidade de reservação, ou seja, reservatórios para regularizar o fluxo de água quando há escassez de chuvas. O que existia como total possível de energia armazenável com relação ao consumo, saiu de cerca de seis meses e meio para quatro meses. A dependência do período úmido cresceu e muito. O ciclo que era plurianual no planejamento da operação passou a ser anual. Não existe mais aquilo de 40 anos atrás de cinco anos de armazenamento.
“A respiração deixou de ser lenta para ser ofegante. A cada ano uma oscilação ponderável faz com que a falta de chuvas se transforme em um grande problema. O submercado SE/CO responde por cerca de 70% da capacidade de reservatórios e por 45% do atendimento ao consumo anual (70% x 63% de hidráulicas). Por isso o período úmido, que vai de dezembro a abril, é tão importante. A ENA (Energia Total Afluente), que representa a energia que as águas podem proporcionar pela chuva em determinado mês, tem média em março (úmido) sendo o triplo em setembro (seco). Daí a dependência enorme”, explica Storfer.
A questão é que se deixou de fazer reservatórios. Nas últimas duas décadas foram feitas usinas à fio d’água, que não possuem reservatórios de acumulação e que dependem, portanto, das chuvas de cada ano. Adicionalmente aumentou significativamente a participação de outras fontes renováveis, como eólicas e solar. São aquelas que não possuem regularização. Tendo vento ou sol funcionam, mas dependem exatamente disso. Storfer pondera que, a segurança do abastecimento não pode depender disso. E complementa: como baterias ainda são antieconômicas, a participação de fontes com características de suprimento contínuo, ou que podem ser despachadas de imediato quando não se tiver vento ou sol são a solução.
“Estas fontes tipicamente são térmicas, seja a gás, óleo, carvão ou mesmo usinas nucleares. Sem dúvida são mais caras e poluentes. Mas a matriz energética que funciona adequadamente é uma composição de diversas fontes. A nossa atual é muito renovável, mais de 75%. Muito acima da média mundial. A complementação com outras fontes acaba sendo necessária. Em especial o gás pode representar uma parcela importante”, avalia Storfer.
Entre os desafios da expansão do setor elétrico brasileiro, Ana Paula Ferme, gerente de Estratégia e Inovação na ENEVA, que palestrou no evento, aponta a evolução da matriz energética brasileira, a contratação da expansão e a agenda setorial, que envolve a modernização do setor elétrico. “A expansão da matriz energética brasileira tem reduzido a participação das hidrelétricas, devido às restrições ambientais e o aumento da participação de outras fontes, incluindo de geração não controlável. Já em 2022, está prevista a entrada em operação comercial de 9 GW em novos empreendimentos, majoritariamente de fontes renováveis não controláveis como eólica, solar, biomassa e gás natural”, ressalta.
Quais as chances de um racionamento?
Na percepção de Andrew Frank Storfer, fazer um racionamento não é algo simples, pois impacta às empresas e à vida das pessoas, além de provocar um estresse na economia prejudicando o crescimento econômico e as decisões de investimento produtivo. No caso de um ocorrer, é necessário um aviso com certa antecedência, de modo que todos possam se organizar e minimizar os efeitos, de pelo menos de 30 a 45 dias do seu início. “Não se decreta um racionamento e se espera que dure pouco. Tipicamente será de ao menos seis meses. É um evento traumático. É sempre a última alternativa a ser adotada, tendo-se esgotadas as demais medidas e antevendo-se mesmo assim severas dificuldades no atendimento futuro à carga”, alerta.
Falar em risco de racionamento, ou chances de ocorrer, estamos falando de probabilidades. Neste momento, Storfer entende que, para este ano não é zero, mas é baixo. Ele explica que, com as medidas adotadas de redução voluntária de consumo, mais importação de energia da Argentina e Uruguai, maior integração na transmissão pelo país, com os ajustes nos níveis de segurança para contingências, ajustes em usos múltiplos, meta de redução de 20% do consumo pelo governo federal, antecipação de geração, o risco para 2021 praticamente ficou afastado. Os instrumentos disponíveis para os órgãos governamentais permitem administrar este risco. Pelo lado da oferta, tem-se promovido aumentos, e pelo da demanda incentivos à redução.
“Se considerarmos o prazo de antecedência de vigência de 30 a 45 dias, se decretado hoje se iniciaria o racionamento bem no início do período úmido, que é 1º de dezembro. Seria um contrassenso, pois o período úmido é determinante. Para 2022 há ainda a entrada de oferta de energia não hidráulica de cerca de 7GW. Além disso, há a previsão legal (autorizada) da possibilidade de se despachar (gerar) com fontes térmicas mesmo no período úmido. Estas ofertas, mais as adicionais contratadas temporariamente e o incentivo para redução de consumo, reduz muito o risco de racionamento para o ano que vem. Mas há que se ressaltar que dependemos de como será o período úmido”, finaliza Storfer.
Acesse o evento na íntegra: