Criar planos de promoção da equidade, com processos, procedimentos e metas claras de inclusão, cursos de formação e protocolos para lidar com eventuais casos de discriminação são fundamentais
Quais estratégias ainda devem ser construídas para que as empresas possam exercer lideranças transformadoras às sociedades com relação ao racismo? Para responder a essa e mais perguntas a Revista ANEFAC conversou com Allyne Andrade e Silva, que é advogada, possui doutorado e mestrado em direito pela Universidade de São Paulo. Obteve o LL.M – Master of Laws- na área de Teoria Crítica Racial da UCLA School of Law. É professora de Direito e Políticas Públicas do Insper, sócia-fundadora da Aya consultoria e soluções integradas e superintendente adjunta do Fundo de Direitos Humanos do Brasil.
É, ainda, autora do livro Direitos e Políticas Públicas Quilombolas, publicado em 2020 pela editora D´Plácido. Integrante do movimento de mulheres negras no Brasil e tem sua trajetória profissional e acadêmica ligada ao direito e as políticas públicas, direitos humanos, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, teoria crítica racial, interseccionalidade, equidade racial e de gênero, diversidade e inclusão. Confira abaixo:
Revista ANEFAC: Com o crescimento da pauta ESG, como as empresas devem tratar a temática racismo?
Allyne Andrade e Silva: Dentro do capitalismo, sabemos que as empresas têm um papel fundamental na transformação da realidade do país não somente na geração de oportunidades de trabalho e renda, mas também na influência que exerce nos rumos políticos dos países. Nesse sentido, é preciso a implementação da pauta ESG, com adoção de ações afirmativas, mas também no enfrentamento do racismo institucional e, ao mesmo tempo, investir na formação de novas lideranças negras e nas organizações da sociedade civil que vem fazendo esse investimento na formação de crianças e jovens negros, educação e combate ao racismo.
RA: Houve evolução nas práticas desenvolvidas pelas empresas com relação ao racismo institucional ou ainda estamos mais focados no marketing?
AAS: Olhe, eu acredito que houve uma evolução real, fruto da ação dos movimentos negros brasileiros. Hoje não se pode mais sustentar um discurso de democracia racial ou de inexistência de racismo no Brasil ou no mercado do trabalho, porque há um acúmulo de dados produzidos por pesquisadores, agências governamentais, ativistas, lideranças e influenciadores que trouxeram o debate de racismo para a pauta.
Com 56% da população brasileira autodeclarada preta ou parda, as empresas estão ainda muito abaixo do potencial que elas têm na promoção da diversidade racial, principalmente quanto às suas posições de liderança e na influência que tem de tornar a discriminação no mercado de trabalho algo inaceitável. Sabemos que as grandes multinacionais, em especial as norte-americanas, têm dado passos largos em relação a isso e será difícil conviver com o mercado global, sem que as empresas tenham um olhar atento.
Sou um pouco mais cética sobre a atuação das empresas, tenho visto mais marketing do que resultados, embora tenha acompanhado de perto as movimentações e aguardado resultados positivos fruto dessas novas movimentações. Se as mudanças forem efetivas, creio que as empresas irão alavancar sua sustentabilidade econômica e social e ajudar na construção de um país menos desigual.
RA: Como você avalia o racismo no mercado de trabalho?
AAS: Creio que as afirmativas, seleções com vagas exclusivas para negros e busca ativa de profissionais no mercado são ações essenciais. Mas é preciso preparar os colaboradores das empresas para compreender a desigualdade, o racismo, o sexismo e a LGBTfobia em sua complexidade. Cursos de formação, com profissionais especializados, são necessários, além de investir dinheiro, tempo e disposição para que essa transformação aconteça. Boa vontade é essencial, mas não basta.
Não é possível tratar a promoção da equidade com amadorismo e nem sobrecarregar profissionais que sejam tidos como representantes dessa diversidade (pessoas negras, periféricas e LGBTQIA+s) como responsáveis por mudar a cultura empresarial e deixá-los sobrecarregados, porque isso é uma reprodução de desigualdade, como se a responsabilidade de mudança fosse exclusiva dessas pessoas. Não é, o racismo é um problema da sociedade brasileira, precisa de todo mundo envolvido para resolver.
Por isso, tenho recomendado que sejam contratados consultores, profissionais experientes que criem planos de promoção da equidade, com processos, procedimentos e metas claras de inclusão, cursos de formação e protocolos para lidar com eventuais casos de discriminação. É preciso criar um ambiente acolhedor para os novos colaboradores e dividir a responsabilidade na criação de políticas de equidade, para que tenhamos uma transformação efetiva.
RA: Você atua no mercado jurídico, como é essa questão neste meio?
AAS: Há uma desigualdade da formação das carreiras jurídicas. Dependendo da faculdade ou universidade que você acessa, a diferença de oportunidades e nível salarial já é bastante significativa. Normalmente, antes das ações afirmativas (políticas que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente), nós tínhamos um perfil muito parecido de pessoas nestas faculdades consideradas de elite, que são as que vão ocupar os cargos de maior prestígio dentro das carreiras jurídicas, tanto as públicas quanto dos grandes escritórios de advocacia.
Com as ações afirmativas, estes estudantes negros começaram a disputar o mercado de trabalho, mas ainda é um percentual muito pequeno. O que a gente vê é que o mercado jurídico não reflete ainda a diversidade e procura entender e reagir a este fenômeno, de ter agora profissionais disponíveis, com uma boa formação e que não possuem a mesma trajetória nem de classe e nem de raça que o ambiente jurídico normalmente está acostumado.
Sem contar que o mercado jurídico de elite não considera talentos que vêm de universidades que não são consideradas de prestígio. Temos muitos estudantes negros que não são destas universidades, mas que são excelentes profissionais. É preciso rever as oportunidades e as exigências.