A estruturação patrimonial para fins de sucessão, seja blindagem, doação ou antecipação aos sucessores tem sido tema de foco das autoridades fiscais, que buscam uma justificativa que não seja tributária
Em épocas de grande crise econômica como a que estamos vivenciando e possivelmente iremos vivenciar nos próximos anos, as relações entre devedores e credores não será mais, se é que algum dia foi, muito harmoniosa. Muitas empresas terão que solicitar recuperação judicial e outras irão falir.
Como consequência, uma grande preocupação dos sócios e dos administradores é a salvaguarda do seu próprio patrimônio, o qual deve ser protegido por garantia da sobrevivência da família. Todavia existem algumas consequências tributárias e societárias decorrentes das sucessões patrimoniais.
A sucessão patrimonial possui diversas possibilidades de aplicação, sendo comum seu uso como forma de blindagem do patrimônio familiar, bem como para a transferência do patrimônio para sucessores, propriamente dita, como forma de antecipação da transferência dos bens feita em vida. Esta blindagem patrimonial preventiva tem como objetivo evitar que os bens dos sócios sejam indevidamente utilizados para a liquidação de dívidas da sociedade. Sem descartar que, eventualmente, tem sido utilizada de forma fraudulenta como mecanismo para dificultar que o credor receba o seu crédito.
Esta outra forma de utilização da blindagem patrimonial, ou seja, esconder ativos, tem sido objeto de profunda preocupação e intensamente combatida pelas fazendas públicas, que têm utilizado de rico ferramental para buscar desfazer manobras patrimoniais. Isto porque como o tributo somente é considerado devido após o encerramento do procedimento administrativo, alguns contribuintes têm movimentado seus ativos na fase administrativa através de reorganizações patrimoniais, algumas vezes por meio de doação ou venda para “laranjas” – pessoas de confiança dos acionistas que apenas cedem seu nome para receber os ativos, mas estes continuam sendo administrados pelos antigos proprietários, em muitas das vezes são empregados das empresas – a valor irrisório ou nunca liquidados financeiramente.
Alguns remédios, utilizados pelo fisco, têm sido o Arrolamento Administrativo Tributário e Medida Cautelar Fiscal, ambos os procedimentos têm como função evitar que o patrimônio do devedor “evapore” antes da execução fiscal. Ainda mais, nas execuções fiscais, as procuradorias têm alegado fraude à execução tributária, solicitando a desconsideração da personalidade do devedor para alcançar os bens dos sócios, bem como, também, solicitando a responsabilização solidária dos administradores como forma de obriga-los a cumprir com as obrigações da empresa, caso esta não possua meios para tanto. O pior disso é que o adquirente de boa-fé acaba sendo prejudicado pela desconsideração da operação, dado que a venda é desconsiderada.
Há diversas estruturas recorrentemente, utilizadas para a sucessão patrimonial, como por exemplo no Brasil, as sociedades chamadas de “holdings”, pois detém participação em outras sociedades ou participação em imóveis, fundos exclusivos, ou estruturas usadas no exterior como as limited liabilities companies – “LLCs”, trusts, fundações, dentre outras.
É raro ver o uso de fundações no Brasil, dado as restrições legais e falta de flexibilidade para a gestão dos ativos, o que não ocorre em muitos países. No caso dos trusts, sequer há normas regulamentares. O nosso direito civil limita em regra em 50% o máximo que o doador pode dispor de seu patrimônio, de forma discricionária, o que outros países não possuem. Assim, em que pese seja uma forma de burlar a lei, transferindo mais do que os 50% regulamentares, o uso de fundações e trusts em outros países concede tal possibilidade.
O uso de holdings pode ser uma ferramenta interessante para transferir os poderes políticos aos sucessores que terão de aprender como lidar com os desafios de tomar boas decisões. Em que pese as cotas de empresas limitadas brasileiras não terem a divisão entre ordinárias e preferenciais, podem alternativamente receber poderes políticos diferentes por classe de cotas, fato este que permite ao doador estabelecer o melhor balanceamento de poderes. Pode este também estabelecer quórum especiais, onde requeiram 100% dos votos e se este mantiver apenas uma cota, vota como Minerva para reestabelecer a harmonia.
No caso da sucessão, um problema insolúvel, que é a divisão entre os sucessores de bens imóveis, pois alguns são indivisíveis sem perder sua qualidade como no caso de um apartamento ou eventualmente uma chácara. Com a transferência para uma empresa, os ativos passam a serem representados por cotas e a partir disso, divisíveis. Além de cumprir com a função de salvaguarda do patrimônio familiar, há algumas vantagens, seja no campo tributário ou no momento da sucessão.
Trataremos apenas de uma hipótese, que é a mais comum, mas que tem gerado uma série de problemas tributários: o aumento de capital por pessoa natural em uma empresa pelo valor de custo dos seus ativos e posterior doação com gravame de usufruto.
Assim temos uma determinada pessoa natural que possui ativos imobiliários em seu nome, adquiridos no curso da vida, onde os valores refletidos na Declaração do Imposto de Renda são, notoriamente, abaixo do valor venal e irá conferir capital em uma nova empresa para doação posterior. Esta doação será apenas da nua propriedade, resguardando para si, os direitos políticos e de dividendos sobre as cotas doadas.
É uma opção do contribuinte a determinação do valor a ser atribuído a estes bens, podendo ser igual ao custo existente no IR ou também pelo valor de mercado. Esta segunda hipótese é pouco comum, pois a diferença entre o custo e o mercado é tributado imediatamente pelo imposto de renda. Passada esta primeira etapa, há necessidade de avaliarmos a possível incidência de outros dois tributos nesta operação: o ITBI e do ITCMD. O primeiro incide sobre a transferência de bens imóveis genericamente falando e o outro sobre sucessão, seja em vida ou não.
Ao optar pela conferência de capital a custo, esta decisão trará necessariamente consequências para o ITBI e do ITCMD uma vez que as bases de cálculo e alíquota não seriam mais aquelas adotadas na doação de imóveis entre pessoas naturais. No caso do ITCMD, o fato gerador é a transferência da propriedade para o beneficiário, seja por doação ou sucessão, a base de cálculo é o valor venal. Em que pese os grandes debates sobre o conceito de valor venal, no caso da doação de imóvel é o valor estabelecido pelo Estado. Quanto a transferência de cotas, a norma prevê o valor do último patrimônio líquido.
Sobre a alíquota, em São Paulo é por enquanto de 4%, mas se a doação foi gravada o usufruto, a alíquota cai para 66%, ou seja, 2,6%. Com isso, as diferenças podem ser enormes numa doação direta de bens comparado com a doação de cotas.
Já, no caso do ITBI, o fato gerador é a transferência dos bens de imóveis e há uma exceção: não haverá incidência desde que as receitas imobiliárias auferidas pela empresa não sejam preponderantes, bem como não tenha atividade imobiliária preponderante nos últimos dois anos, como previsto no normativo paulistano. Para evitarem a incidência do ITBI, alguns têm aportado os bens nas empresas e aguardado este período de dois anos evitando registrar quaisquer receitas na empresa e, ultrapassado o período de graça, passam a receber as receitas imobiliárias, que não mais reverteria a imunidade do ITBI.
Por sua vez, no caso do ITCMD, alguns contribuintes têm adotado o exemplo acima proposto dentre outras diversas estratégias, ou seja, doam cotas gravadas com usufruto ao invés dos imóveis propriamente ditos, o que provavelmente reduzirá substancialmente a base de cálculo pela troca do valor venal por custo histórico na declaração de imposto de renda bem como a alíquota, que será reduzida de 4% para 2,6% pelo gravame do usufruto.
Porém, os fiscos estaduais e municipais atentos à tais iniciativas, têm reiteradamente autuado as empresas cobrando o ITBI e o ITCMD, algumas como simulação, outras como desvio de finalidade da norma, uma vez que falta o elemento essencial do negócio que é a vontade real, sendo muitas vezes também tratado como falta de “substância econômica.
Indiferente da categorização: essência sobre forma, falta de substância, abuso do direito, simulação, negócio indireto, entre outras possibilidades, o fato é que o contribuinte se vê obrigado a se defender de uma obrigação tributária, acrescida de multas e, eventualmente, tendo os administradores como solidários.
Interessante que estes autos têm sido recorrentemente mantidos na fase administrativa uma vez que a justificativa apresentada pelos contribuintes gira normalmente em torno da legalidade, ou seja, não há proibição de se estruturar os referidos patrimônios, mesmo que a consequência seja a redução da carga tributária. Por sua vez, o fisco tem conseguido manter as autuações por demonstrar que a redução tributária não é consequência, mas causa.
Alguns contribuintes buscaram a defesa de seus interesses nos tribunais judiciais. Nesta fase há alguns custos adicionais, como por exemplo, a obrigação de oferecimento de garantias, aumento da dívida pela existência de honorários públicos, certidões negativas pendentes etc. Nesta esfera, as decisões variam.
No caso e que poderíamos chamar de estrutura básica, principalmente o Supremo Tribunal tem mantido as decisões de instâncias inferiores, pelo fato de ser impossível rever provas e, como os tribunais inferiores variam seus entendimentos, isso acaba influenciando os superiores.
Citamos algumas situações interessantes dos tribunais administrativos e judiciais, onde indicamos as ementas:
- ITBI – IMÓVEL INCORPORADO AO PATRIMÔNIO DA PESSOA JURÍDICA EM INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL. DESVIO DE FINALIDADE DA NORMA. Auto de infração mantido;
- IMUNIDADE. INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL. HOLDING FAMILIAR que não exerceu qualquer atividade. Auto de infração mantido;
- ITCMD – perdão de dívidas. Incidência sobre a parcela perdoada. Auto de infração mantido.
- ITCMD – aumento de capital em empresa em paraíso fiscal e posterior doação para fundação. Tributo devido.
Assim, a estruturação patrimonial para fins de sucessão, seja blindagem, doação ou antecipação aos sucessores tem sido tema de foco das autoridades fiscais, que buscam uma justificativa que não seja tributária.
Estas justificativas, que muitos tratam de “substância econômica”, devem estar claras e justificadas de forma com que a transferência patrimonial seja considerada válida pela autoridade sob pena de configuração de “simulação” pela fiscalização e a consequente desconsideração da estrutura adotada em eventual responsabilização solidária do sócio.
*Artigo escrito por Roberto Fragoso, que é vice-presidente adjunto de tributos da ANEFAC