O futuro da contabilidade é agora e, até que venha outra linguagem que a substitua, o contador e a contabilidade continuarão sendo essenciais para a sociedade e para as empresas
Em mais uma crise econômica, e em função do desconhecimento sobre o impacto da pandemia da Covid-19, o mercado e a sociedade colocaram uma lupa para analisar com cuidado se as empresas irão continuar as atividades operacionais. Os interessados na saúde financeira das organizações (stakeholders) podem até escutar e ler uma série de projeções, análises e orçamentos, entre outras informações, mas qualquer analista experiente e cuidadoso não deixará de analisar as demonstrações contábeis. Isso é fato!
Nesse momento, não há outro recurso que reduza a assimetria informacional entre as empresas e os stakeholders. Não adianta negar nem menosprezar a contabilidade e tampouco divulgar pesquisas sobre o possível fim da profissão e da contabilidade. Até hoje, não há nenhuma outra ferramenta que substitua ou que venha a substituir a contabilidade como linguagem dos negócios. Pergunte a qualquer investidor, instituição financeira ou outro agente de mercado sobre a relevância das informações contábeis na tomada de decisão e se estes seriam capazes de fazer um investimento relevante sem analisar as demonstrações financeiras de uma organização. É possível que alguns negócios sejam concluídos sem que seja considerado a análise desses dados, contudo o risco será precificado ao refletir as incertezas das informações.
Obviamente, há uma parcela significativa de empresas em que os proprietários e executivos não incluem a contabilidade como prioridade na gestão. Eles somente se dão conta desse erro quando não enxergam a rentabilidade do negócio, incidem em perdas, contingências não mensuradas, pagamentos indevidos de impostos, ou quando um possível investidor declina do ativo por conta de informações inadequadas, entre outras situações. Nesse cenário, pode-se perguntar se a culpa é do contador. De certa forma sim, mas a maior responsabilidade cabe ao executivo ou ao proprietário que não se preocupou com dados importantíssimos da contabilidade. Aliás, o que temos visto é que muitos empreendedores e gestores financeiros se interessam apenas pelo caixa e o EBITDA (resultado antes dos impostos, despesas/receitas financeiras e da depreciação) e consideram a contabilidade apenas um instrumento para atender o Fisco e deixam de lado informações importantes produzidas pela área.
No cenário atual, é provável que os usuários (stakeholders) exijam informações contábeis mais detalhadas, transparentes e aderentes com as práticas contábeis e façam questionamentos sobre os valores apresentados nas demonstrações contábeis, principalmente agora nessa fase de indefinições por conta dos impactos da Covid-19 nas empresas. De forma geral, as grandes companhias e aquelas reguladas já têm a obrigação de apresentar ao mercado informações contábeis detalhadas, mas as menores fazem divulgações somente quando são exigidas e em determinadas ocasiões, como, por exemplo, no momento atual de crise que estamos vivenciando.
Mas, mais do que apenas divulgar para o mercado, a apresentação e a análise das demonstrações contábeis mensalmente são um exercício que cada empreendedor deveria fazer independentemente do momento, já que estas deveriam refletir o estágio da saúde das empresas. Se um executivo ainda não tem conhecimentos profundos sobre contabilidade, o ideal é que ele procure entender pelo menos os conceitos básicos sobre o assunto.
Olhar com cuidado os demonstrativos contábeis, identificando ativos que não são rentáveis e obsoletos, despesas que podem ser reduzidas, créditos tributários que não são aproveitados, produtos com margem negativa, pagamentos de impostos a maior e/ou alternativas fiscais inadequadas são práticas que devem ocorrer no mínimo uma vez por mês. Ou seja, o ideal é que seja feito um aprofundamento do entendimento das informações contábeis e que haja uma interação maior com o contador. Esse profissional poderá ajudar em muito no fornecimento de informações confiáveis e transparentes para a tomada de decisão e avaliação dos cenários futuros.
Como recomendações, o ideal é não deixar para realizar os ajustes somente em épocas de crises e não o fazer apenas porque outras empresas estão fazendo. Avaliar os valores e os saldos, questionar e desafiar o contador fazem parte desse processo. Caso contrário, este poderá não estar preparado para saber da situação financeira e patrimonial da empresa e ajustar eventuais caminhos de rota nesse cenário de turbulência para retomar ou manter o crescimento, a lucratividade e, consequentemente, a perpetuidade da empresa.
Considerando o cenário atual e o que pode estar por vir, algumas considerações e reflexões são necessárias:
Para os usuários das demonstrações contábeis:
- é importante conhecer as práticas contábeis para analisar e desafiar adequadamente os preparadores dessas informações;
- analisar indicadores econômicos e financeiros sem conhecer as práticas contábeis pode levar a decisões equivocadas. Um bom exemplo é o EBITDA, que pode ser analisado equivocadamente devido à nova norma contábil de arrendamentos e por políticas discricionárias da empresa;
- não se deixem influenciar pela visão, por vezes errônea, de que baixas contábeis são um aspecto meramente contábil, como voltamos a discutir recentemente. Se um ativo não gera benefícios econômicos, que em última análise representa o fluxo de caixa esperado, certamente baixas contábeis terão sim impacto no fluxo de caixa.
Para as empresas:
- apresentar demonstrações contábeis factuais e fidedignas sempre. Em épocas de crise é comum ver a tal “contabilidade criativa”;
- ter sempre ética nos negócios;
- enriquecer as notas explicativas com informações qualitativas;
- avaliar a possibilidade de divulgar o relato integrado que, embora não seja um documento obrigatório, incorpora diversas áreas da empresa;
- não fazer da governança corporativa uma peça de marketing, principalmente em relação aos pilares ligados à contabilidade como prestação de contas e responsabilidade corporativa.
Paras os contadores:
- cumprir as obrigações tributárias, previdenciárias etc., mas temos condições de ajudar as empresas em outras dimensões;
- adotar uma posição de protagonista, principalmente nesse cenário de crise, produzindo informações preditivas para apoiarmos a tomada de decisão;
- participar efetivamente da governança corporativa das empresas e de questões que envolvem a sociedade e o mercado de capitais, como a reforma tributária, desburocratização, previdência e outros temas relevantes para a agenda do país;
- combater severamente atos ilegais, pois a falta de ética nos negócios pode custar caro no futuro;
- conhecer com mais profundidade aspectos econômicos e finanças corporativas, pois esses temas estão cada vez mais presentes na profissão;
- participar do processo de transformação digital que está acontecendo nas empresas e na profissão;
- participar das discussões e das proposições de mudanças de modelos de negócios nas empresas.
O futuro da contabilidade é agora e, até que venha outra linguagem que a substitua, o contador e a contabilidade continuarão sendo essenciais para a sociedade e para as empresas.
* Artigo escrito por Marcelo Aquino, que é sócio da KPMG no Brasil e diretor executivo da regional Centro Oeste da ANEFAC.