“Identificar possibilidades da sua aplicação é fundamental e gera vantagem competitiva, novos produtos e soluções de negócios para o mercado”
Ao parafraser Albert Eistein: a ´loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente da mesma forma´, Rodrigo Bauce, senior manager (Financial Instruments Specialists) da KPMG, acredita que usar o termo revolucionar para abordar Blockchain é muito forte em alguns contextos. Bauce possui 16 anos de experiência com mercado financeiro, pricing, operações com derivativos e contabilidade aplicada (13 anos na KPMG). É um dos fundadores do time de instrumentos financeiros da KPMG e responsável por uma das primeiras aplicações (em auditoria no Brasil) de big data para precificação de ativos e fund data analytics. Atuou por 2 anos no Financial Instrument Topic Team da KPMG de Londres e é um dos autores do posicionamento firma para Instrumentos Financeiros (implementação da IFRS 9 – KPMG Global).
O EBA Report de 9 de janeiro de 2019, menciona que o uso de criptoativos e DLT evoluiu rapidamente nos últimos anos e deve continuar a fazê-lo à medida que as tecnologias continuarem a serem testadas dentro e fora do setor financeiro. De acordo com ele, a grande questão, no momento, é como harmonizar isto com a realidade regulatória e operacional dos mercados. Para o executivo, que será palestrante no Congresso ANEFAC 2019, há exemplos na Rússia, China e Austrália da aplicação da tecnologia que podem servir como exemplo em outros campos como transporte e agronegócio. Conheça mais sobre a visão de Bauce, que acredita que a tendência para a harmonização de novas propostas tecnológicas precisará estar acompanhada de ajustes no ambiente regulatório, compliance e alteração da mentalidade dos usuários.
Quais são as principais características do Blockchain?
O principal pilar pode ser descrito como uma tecnologia de registro compartilhado que possui descentralização como medida de segurança. Ou seja, um sistema de blocos com monitoramento passo a passo e funcionando como um livro-razão (muito parecido com um processo contábil popularmente descrito como ´partidas dobradas´ pelo brilhante pai da contabilidade Luca Pacioli do século XV).
Outra grande característica, muito visível no caso das criptomoedas, é que este processo é feito de forma pública, compartilhada e universal, que cria consenso e confiança na comunicação direta entre duas partes, ou seja, sem intermediários (terceiros).
Este processo é crescente à medida que novos blocos completos são adicionados a ela por um novo conjunto de registros e ocorre de forma linear e cronológico, momento a momento. Esta característica de revisão automática como sendo um processo de auditoria constante e impecável é muito fascinante. Mais do que isto, transparente! Público e ao mesmo tempo seguro.
A normatização da Blockchain pode mudar completamente os ideais que criaram o criptomercado? Como se dará isso?
Não é possível, neste momento, prever para onde vai a normatização e pode ser muito diferente nos sistemas financeiros quando comparado com outras áreas. De qualquer forma, entendo que seja importante separar os assuntos em um primeiro momento. O uso de criptoativos depende principalmente de criptografia e DLT (do inglês distributed ledger technology). No entanto, o racional de um protocolo de confiança, hoje conhecido como Blockchain, é anterior a esta específica aplicação prática no criptomercado. Assim, temos três grandes assuntos em pauta: criptoativos, DLT e Blockchain. Neste sentido, o primeiro parece ter atraído maior atenção. Hoje, temos o caso do Japão onde operações de criptomoedas foram adequadas a uma nova categoria legal denominada criptoativos e estas transações estão previstas neste ambiente se estão registradas na Agência de Serviços Financeiros do Japão. Não existe um panorama global de regulação, mas algumas decisões estão sendo debatidas individualmente em cada jurisdição.
No Brasil, o BACEN já se manifestou mencionando que a denominada ´moeda virtual´ não se confunde com a definição de ´moeda eletrônica´ e que existem restrições neste mercado específico. De acordo com o BACEN, não foi identificada pelos organismos internacionais a necessidade de regulamentação desses ativos, muito em função do volume. No Brasil, por enquanto, não se observam riscos relevantes para o Sistema Financeiro Nacional. Contudo, o BACEN tem atenção à evolução do uso de criptoativos, bem como acompanha as discussões internacionais para fins de adoção de eventuais medidas.
A CVM também possui muita cautela no assunto, mas, em setembro de 2018, comunicou que fundos nacionais estariam autorizados a investir indiretamente em criptoativos, desde que devidamente regulamentados no mercado do país em que são sediados, seguindo a instrução CVM 555.
De qualquer forma, isto não restringiu uma recente operação local com Blockchain envolvendo um grande banco brasileiro e duas instituições globais. Daí a importância de separarmos os assuntos, e entender que as maiores discussões de normatização e regulação estão na esfera de criptoativos mais especificamente e existe um processo extenso de debate bem ilustrado pelo EBA (European Banking Authority) no EBA report de 9/1/2019. Veja o documento aqui.
Cada vez mais os estados e grandes instituições estão entrando no criptomercado?
Ainda é cedo para falar sobre qualquer tendência. É uma tecnologia nova e que vem apresentando progressos, mas existe um longo caminho de percurso ainda. De fato, em 2018 tivemos um aumento observável de bancos centrais estudando e pesquisando sobre o tema.
O BIS (Bank of International Settlements – considerado o banco central dos bancos centrais) debateu o tema recentemente no mercado, indicando que 70% dos bancos centrais do mundo estão desenvolvendo pesquisas sobre moedas digitais que possam ser emitidas e controladas por essas instituições. Na minha visão isto seria algo diferente do que temos, pois estas moedas seriam emitidas por bancos centrais, centralizadas e reconhecidas legalmente pela jurisdição. O perfil de criptoativos transacionados no mercado atualmente é disruptivo e completamente descentralizado.
Mencionando novamente o EBA Report de 9 de janeiro de 2019, existe o plano de desenvolver, neste ano, um maior monitoramento do nível e tipo de atividade (no documento foi mencionado um template para o mercado). Neste documento foi levantada a importância da análise de custo-benefício, considerando as potenciais aplicações de DLT e criptoativos para o setor financeiro.
No meu entendimento, as oportunidades são múltiplas, como por exemplo, a ideia de transações seguras, instantâneas e com redução de custos. Contudo, me parece existir um medo generalizado quando o assunto é descentralização, abertura e ineficiência gerada por uma infinidade de moedas paralelas. Desta forma, é difícil correlacionar ações de grandes instituições com investimentos de bancos centrais no mundo.
Esse número provavelmente vai aumentar, considerando que o uso do dinheiro comum está cada vez menos popular e novos métodos de pagamento e transferências começarão a ser mais explorados?
Não posso afirmar que esta é a solução que vai mudar o mundo e, como comentei anteriormente, é importante não confundir ´moeda virtual´ com ´moeda eletrônica’, e o BACEN teve muita categoria nesta avaliação, diga-se de passagem. Existem múltiplas visões e a manifestação recente do Gerente Geral do BIS parece dar uma direção contrária ao mercado de criptomoedas, ao enfatizar que o Bitcoin não é dinheiro e nem mesmo um tipo de investimento e sim, apenas algoritmos de software. Desta forma, em uma visão, as reformas nos sistemas de pagamento que estão sendo adotadas pelos bancos centrais seriam muito mais valiosas do que a atenção dada às criptomoedas (a visão debatida teve base na verificação de uso de pagamento com cartões que atingiu 25% do PIB em 2016 em comparação com 13% em 2000).
Por outro lado, podemos debater isto em termos práticos. Por exemplo, quando você vai em uma loja ´Z´ com o seu cartão de crédito de uma bandeira ´X´, passa em uma máquina da empresa ´Y´ e que automaticamente se comunica com seu Banco ´ABC´. Ao final deste processo, que costuma ser bem rápido salvo problemas de internet, você efetua a transação.
A pergunta-chave é, que tal fazer a mesma operação com um criptoativo envolvendo apenas a Loja Z e você? Não seria interessante em redução de custos e velocidade com apenas 2 participantes?
O grande dilema que precisa ser observado é que não foi o táxi que inventou o transporte de aplicativo. No processo evolutivo vai vencer o mais forte. Isto foi bem dramático para locadoras de filmes, porém existe um público apaixonado por discos em vinil e vitrola até os dias de hoje.
Neste contexto, a utilidade, eficiência e vantagens são claras. Mas existe muita coisa em jogo para ser amadurecido.
O Blockchain ganhou notoriedade devido à popularização do Bitcoin, porém essa tecnologia não serve apenas como o “livro caixa” virtual para registrar operações envolvendo criptomoedas?
É importante a separação dos temas exatamente em função da ideia central de criptomoeda como sendo uma das possíveis aplicações do Blockchain. A exemplo disto temos a captação de recursos efetuadas recentemente no Brasil com bancos estrangeiros. Em operações deste tipo, uma redução relevante do tempo trocando documentos e e-mails pode ser observada. Assim, os bancos negociam o recebimento de garantias para mitigar flutuações do mercado em risco de crédito e o sistema com Blockchain ajuda neste processo, porque o valor da garantia é recalculado e confirmado pelas partes periodicamente.
Outra aplicação interessante deste recurso tecnológico foi observada em uma companhia aérea na Rússia. Neste caso, a empresa estima o volume de combustível necessário e um preço é acordado para então acionar o abastecimento da aeronave. Mas a quantidade de combustível só é especificada com precisão pelo piloto. Nesse momento, o custo exato é conhecido e uma solicitação on-line é enviada ao banco da empresa para bloquear os fundos. Uma vez que isto seja confirmado, o reabastecimento começa e, após a conclusão, o pagamento é feito. Tanto a companhia aérea quanto a empresa de combustível têm as mesmas confirmações e o processo leva 60 segundos.
Sem o Blockchain, o combustível tem que ser pago antecipadamente, ou uma garantia bancária é necessária. Portanto, evitar esses dois cenários é um exercício de economia de dinheiro. E o Blockchain também elimina a necessidade de reconciliações entre a companhia aérea e o fornecedor de combustível.
Algumas aplicações para agronegócios na China e Austrália também chamam a atenção como por exemplo, no controle de qualidade, volume, precisão, rastreamento de dados e compartilhamento de informações.
Vejo um potencial muito grande no setor de energia/eletricidade também com a precisão e aprimoramento da estatística de dados, distribuição e central de dados alimentada de forma dinâmica.
Todos estes são cenários que provavelmente serão testados de forma mais ampla e derivando novas aplicações, eventualmente em combinação com outras tecnologias. A transformação digital e inteligência artificial está aí disponível em nosso dia-a-dia.
O potencial da tecnologia abrange diversas áreas sem qualquer relação com transações financeiras, e por esse motivo é uma aposta para 2019. Mas por que o Blockchain é tão importante?
A inovação e transformação digital virou pauta do momento, mas existem inúmeras vertentes e possibilidades. Não só o Blockchain, mas a inteligência artificial e a organização de dados é de grande importância para esta etapa que vem sendo chamada de quarta revolução industrial. Na KPMG, fui pioneiro no processo de fundação e desenvolvimento de um departamento de pricing focando em modelagem, big data, fund data analytics, precisão de fontes usadas e compartilhamento de dados, hoje segregado em dois departamentos denominados Financial Instruments Specialists e Lighthouse.
Lembro como se fosse hoje de uma reunião que ocorreu em 10 de junho de 2008 para debater isto. E também lembro que o mercado só foi digerir temas como big data e data analytics após 2011, 2012. Ou seja, identificar possibilidades de aplicações é fundamental e gera vantagem competitiva, novos produtos e soluções de negócios para o mercado.
É uma tecnologia que é vista por especialistas como sendo uma das mais revolucionárias para resolver problemas computacionais que envolvem um grande volume de dados espalhados pelo mundo?
Esta história é antiga. Já debatemos na década de 80 questões de privacidade, segurança e criptografia na internet. No início da década de 90 teve um matemático genial chamado David Chaum com uma proposta para pagamento digital praticamente perfeito. O problema todo foi que os compradores on-line não estavam muito interessados em segurança e isto levou a quebra da empresa alguns anos depois da proposta inicial.
De forma geral, tanto no universo bancário como na internet, fazer negócios exige um pouco de fé e bom comportamento dos usuários. O grande salto, talvez, esteja na mentalidade dos usuários e não somente em desenvolvimento de novas tecnologias.
Qual o impacto no universo contábil/de auditoria?
Para a contabilidade e a auditoria, ter um sistema em blocos que consegue se auto monitorar e validar informações, seria um mundo perfeito. Algumas pesquisas e debates estão sendo efetuadas neste sentido. Poderia, de fato, revolucionar a contabilidade.
Estive em Londres recentemente em um congresso do topic team de instrumentos financeiros e verifiquei algumas questões interessantes no panorama contábil. As grandes firmas de auditoria estão bastante entretidas em dilemas contábeis tais como classificação de criptomoedas, valorização das mesmas, identificação de mercado principal, impostos, questões legais e regulatórias. Existem outros assuntos também como o papel do minerador de criptoativos e como enquadrar o retorno gerado na contabilidade.
Debates sobre enquadramento de Tokens e ICOs na contabilidade também estão sendo discutidos em fóruns internacionais.
Como as empresas de contabilidade e de auditoria devem trabalhar a ferramenta? E para o profissional das áreas?
Neste estágio, como contador e auditor, recomendaria a observação da necessidade do mercado e muita, mas muita pesquisa mesmo.
O que a KPMG tem feito na área?
É um tema que depende de posicionamento regulatório e normativo. Isto é algo acima da KPMG. Contudo, existem investimentos significativos em P&D. Em fevereiro de 2017 foi fundado o topic team de criptoativos e Blockchain na KPMG dos EUA. Temos um grupo técnico debatendo aspectos normativos em Cayman e outro em Londres.