Dos fatores ESG, o “S” é de social. Na visão, Danielle Torres, trans feminina, sócia diretora da KPMG, o diálogo não é mais binário no sentido de ter ou não diversidade. Mas qual a maturidade que a empresa está na curva de aprendizado e de sua própria evolução em relação ao tema
“Entendo que é importante compreendermos que a executiva de finanças pode ser diversa. Ainda sinto uma certa expectativa em imaginar uma característica específica como representativa da profissão. De fato, temos cada uma as nossas particularidades. É na representatividade de nossa multiplicidade que nos fortaleceremos”, aponta Danielle Torres, trans feminina, sócia diretora de Práticas Profissionais da KPMG. Iniciou sua carreira na área financeira logo que ingressou na faculdade, como estagiária em uma seguradora. Sua inserção na pauta de diversidade tornou-se relevante no âmbito corporativo a partir deste momento, pois pouco se encaixava na expectativa do perfil que costumava ser enfatizado à época, vinculado primariamente a aspectos socialmente reconhecidos como masculinos. A sua resposta a esse cenário foi invariavelmente se masculinizar.
Ao longo da sua carreira, Torres acredita que, duas das suas características se tornaram um obstáculo mais claro ao seu progresso. A primeira é ser vegetariana. Apesar de isso ter mudado completamente, inclusive sendo, geralmente, associado a um status saudável e positivo, nem sempre foi assim. Em alguns contextos, ser vegetariana estava associado a um estereótipo de fraqueza e uma contraposição a uma característica social do executivo brasileiro, que inclui a realização de reuniões de negócios em ambientes voltados ao consumo de carne. A segunda, muito mais complexa de administrar, é o fato de ser feminina. Essa característica foi realmente desnorteante ao longo da sua carreira e a levou a uma caminhada solitária na maior parte do tempo. Enquanto muitos podiam encontrar apoio em seu gênero, no limite e no reconhecimento dos desafios e na união para a superação desses no caso das mulheres cisgênero, precisou seguir um caminho próprio de compreensão. “Costumo dizer que lutei muito para ser reconhecida pela minha competência profissional e não por ser trans feminina. Apesar das claras melhorias, infelizmente, por vezes ainda me encontro em situações de diálogo em que isso não é claro”, explica.
O crescimento da pauta diversidade e inclusão nas empresas, na visão dela, é excelente, pois entende que todos somos diversos e que, em um grau menor ou maior, tivemos que abandonar alguma característica ao longo da nossa trajetória para nos encaixarmos melhor na expectativa social. Para ela, as empresas estão percebendo que à medida que restringimos a autenticidade também minamos a capacidade produtiva e inclinação para a inovação. “Acredito que essa situação não é mais compatível com o mundo atual. Precisamos reter as pessoas certas e o melhor é que elas estejam à vontade nas organizações. Além de ser o certo a se fazer, é excelente para os negócios. As pesquisas e relatos são claros no sentido do benefício que a diversidade e a inclusão trazem. Visões homogêneas podem levar a decisões homogêneas e não são mais representativas de um mercado consumidor amplo e digitalmente conectado. Quanto ao ESG, o “S” é de social, sendo natural a intersecção com o tema. Em minha visão, o diálogo não é mais binário no sentido de ter ou não diversidade. Mas qual a maturidade que a empresa está na curva de aprendizado e de sua própria evolução em relação ao tema”, diz.
Além da dificuldade em priorizar a questão, a diversidade, englobando demografia, gênero, habilidades e experiências parece andar separada da inclusão que envolve sentimentos de pertencimento, respeito, empoderamento e crescimento. De acordo com Torres, pertencimento é de difícil mensuração, pois envolve um sentimento. É perceptível para ela, por exemplo, que ao ocupar um espaço social não necessariamente se sente incluída. Do ponto de vista prático, consegue identificar o seu sentimento de inclusão a partir de duas perspectivas, que contribuem para que tenha uma distinção clara se há um descompasso entre discurso, prática e se de fato está incluída, ou se aquele somente cumpre uma função de representar a diversidade:
A primeira é a naturalidade com que consegue conduzir o seu dia a dia. Ambientes que tornam a sua identidade de gênero a temática ou insistem em uma posição invasiva a sua privacidade, ainda que de maneira discreta, fazem com que perceba que não há uma autenticidade ou interesse pleno na sua inclusão. É por isso que busca estabelecer relações e se associar a contextos que privilegiam a naturalidade. Afinal, não é por ter orgulho do seu gênero que é o seu gênero.
A segunda é a compreensão e valorização do seu talento. As oportunidades devem surgir a partir de contextos neutros que privilegiem a sua capacidade. Se é preterida por uma característica pessoal logo percebe que não é esse lugar que irá se sentir mais inclinada a dedicar os seus esforços.
O que falta para os programas de diversidade e inclusão funcionarem nas empresas?
Em primeiro lugar, Torres entende que, é preciso reconhecer que existem organizações em diferentes graus de maturidade sobre a pauta diversidade e inclusão. “Para algumas, incluindo aquela que tenho o privilégio de trabalhar, diversidade é um tema maduro e faz parte do dia a dia e dos valores da organização. Está no DNA. Outras, ainda estão no caminho. Dentro dessa jornada, um aspecto que considero fundamental é compreendermos que todos nós somos diversos. Entender que diversidade está ligada à orientação sexual ou identidade de gênero, por exemplo, é, a meu ver, uma visão limitante. Reconheço que existem grupos que requerem diferentes abordagens, por parte do corpo de diversidade da organização, especialmente aqueles cuja inclusão na própria sociedade é incipiente. Porém, também aprecio que o estabelecimento de uma política de oportunidades equitativas (que é, a meu ver, o objeto fim dos esforços em diversidade e inclusão) envolve reconhecer que todos nós somos diversos. Afinal, somos todos humanos. Enxergarmos a diversidade, somente no outro, pode atrasar uma jornada cujo frutos serão percebidos e colhidos por todos”, avalia.
Nos últimos tempos, observa-se um movimento crescente de organizações que aplicam objetivos e cotas tangíveis para promover a diversidade. A grande questão é se o preconceito sistêmico será combatido, dando espaço à inclusão real nas empresas. Segundo ela, em primeiro lugar, o preconceito sistêmico advém de uma vertente social. “Não tenho a expectativa de não encontrar pessoas preconceituosas em minha jornada, mas sim que existam canais e mecanismos para endereçar as situações. É importante percebermos que o preconceituoso não necessariamente é uma pessoa grosseira. No âmbito das micro agressões, mesmo aquelas que aparentam um comportamento condizente, podem revelar-se preconceituosas. Por isso, é importante nos atentarmos aos comportamentos e não racionalizarmos ou justificarmos as ações não condizentes com os valores organizacionais por ser desconfortável dialogar a respeito”, alerta.
Nesse sentido, Torres enfatiza a visão de que, inclusive está direcionando a sua pesquisa acadêmica, inclusão ocorre quando a probabilidade de sucesso não varia em função de um status sensível como é, por exemplo, gênero. “Não é fácil medir na prática. Mas indiretamente podemos ter indicações como discrepância salarial, tempo médio em uma função até a promoção, formação versus posição ocupada, característica de candidatos que falharam em uma entrevista, desligados da organização, entre outros. Não há uma resposta clara, pois envolve o comportamento humano que é, em si, complexo. Reconheço que nem sempre a autodeclaração de um status sensível é realizada, está disponível ou armazenada. A privacidade é fundamental. De uma maneira positiva, é inegável que observamos relevantes mudanças especialmente na última década. Cada vez mais organizações reconhecem e abrem espaço para profissionais qualificados ocuparem funções, independentemente de aspectos individuais”, explica.
O próximo passo importante para as organizações, que querem mudanças profundas, é transformar a cultura para inspirar, permitir e encorajar tanto a diversidade como a inclusão, pois a diversidade é uma jornada. “Não acredito que chegue ao fim. Imagine uma profissão e pense quem é o profissional que vem a sua mente. Área médica, advocacia, aviação ou mesmo finanças. Para a maioria das pessoas, as imagens que se formam provavelmente envolvem homens. Esse exemplo simples faz com que eu reflita a respeito da nossa própria herança e histórico social. Seria improvável imaginar que tal expectativa não encontre eco no social e reflita na progressão da carreira de uma profissional. Portanto, o diálogo é o caminho. Reconhecermos nossas inclinações e, acima de tudo, estarmos abertos à mudança. Afinal, não podemos mais nos perguntar quando a mudança irá chegar. Ela já chegou. A rápida e constante transformação invariavelmente fará parte do nosso futuro”, finaliza Danielle Torres.
A temática a beleza da diversidade, representatividade e inclusão foi tema de evento da ANEFAC, intitulado Mulheres Extraordinárias, realizado em março, Torres foi umas das palestrantes. Confira abaixo o conteúdo na íntegra.