Mesmo não sendo simples, exemplos muito claros hoje são as ações de grupos como Marfrig e JBS, que estão definindo protocolos ousados para implementação da rastreabilidade de toda a cadeia da carne (cria, recria e engorda)
Dados do mercado mostram que os fundos ESG (Environmental, Social and Governance ou Ambiental, Social e de Governança, em tradução livre) já ultrapassaram US $1 trilhão globalmente. Embora o conceito não seja recente, o escopo por trás do acrônimo ESG ganhou muito impulso nos últimos anos. Alguns fatos reforçaram este movimento, como as manifestações em 2019 de CEOs na Business Roundtable nos EUA, o posicionamento de grandes fundos como o BlackRock e o debate mais intenso em relação às mudanças climáticas e questões sanitárias.
Na pandemia estas questões afloraram de vez. Na percepção do Dr. Cláudio Antonio Pinheiro Machado Filho, professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP) e coordenador do PENSA (Centro de Conhecimento em Agronegócios) da Fundação Instituto de Administração (FIA), isso é o reflexo das pressões da sociedade em relação às externalidades do setor produtivo em questões sociais e ambientais. “O setor financeiro já tem consolidado os parâmetros do G de Governança no seu mindset decisório. As dimensões sociais (S) e ambientais (E) se intensificaram nos últimos anos, passando a fazer parte do mainstream do processo decisório de grande parte dos agentes financeiros. No agronegócio, dada a sua natureza intrínseca, os desafios são vários, nos diferentes elos das diversas cadeias produtivas. Daí a necessidade de uma abordagem sistêmica”, diz.
Com essa mudança da sociedade e das empresas, consequentemente, há um movimento igual do setor financeiro, muito no quesito de investimentos nos agronegócios. Isso acontece, segundo ele, porque o setor reflete tanto as perspectivas dos provedores de capital em relação a estes temas como da própria lógica do mercado consumidor, que tende a penalizar consumo de produtos com originação duvidosa e que passam por processos produtivos em não conformidade com questões ambientais e sociais. Com isso, avança com muita intensidade a necessidade de rastreabilidade das cadeias desde a origem da produção até o consumidor final. As novas tecnologias da revolução digital (blockchain, IOT, machine learning e big data) já são cada vez mais incorporadas neste novo mundo do agro.
Outro ponto importante, no mercado internacional, Claudio Filgueiras, chefe do departamento de regulação, supervisão e controle das operações de crédito rural e do Proagro (DEROP) do Banco Central do Brasil, acredita que a busca por produtos originários de práticas agropecuárias sustentáveis tem crescido num ritmo acelerado. “Diante dessa evidência, temos visto a preocupação de grandes produtores brasileiros em certificar sua cadeia produtiva, demonstrando o esforço que tem sido feito para adequar seu processo produtivo às exigências do mercado. Com relação ao agronegócio, como as práticas ESG tem sido o foco na alocação de recursos por parte de gestores, acredito que os produtores que conseguirem demonstrar o quão sustentáveis são suas cadeias produtivas, bem como seu processo produtivo, mais facilmente conseguirão se inserir nos investimentos habilitados para receber esse tipo de funding”, ressalta.
Lembrando que as oportunidades que os fatores ESG representam ao agronegócio, para Pinheiro, são fantásticas. “O Brasil pode se aproveitar de uma condição privilegiada de ser um grande produtor de alimentos global e um grande aliado na busca de mitigação das questões climáticas globais. Temos um código florestal que é exemplo para o mundo, mas é necessário empenho na sua plena implementação. Além de práticas produtivas inovadoras inseridas no Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono) como a Integração Lavoura Pecuária, Floresta (ILPF) e a recuperação de pastagens degradadas. Hoje, o país tem em torno de 52 milhões dentro do escopo do Plano ABC, mas existem muitos gargalos nas áreas de logística, armazenagem e outros itens associados ao custo Brasil. Todavia podem ser vistos também como oportunidades para investimentos privados, o que já vem acontecendo”, avalia.
Em um mundo hiperconectado, os exemplos mostram que qualquer deslize, intencional ou não, que possa causar externalidades negativas na sociedade têm reflexos imediatos e profundos na reputação e no valor das organizações. Por isso, há dois movimentos em curso impulsionando a ESG no mundo dos agronegócios: investidores que procuram empresas com práticas sustentáveis e a demanda da sociedade. Para Pinheiro, os desafios dos fatores ESG no agronegócio estão divididos em três dimensões:
1º questão produtiva e tecnológica: neste quesito, o agronegócio brasileiro vai bem.
2º liderança e articulação institucional: passa pela coordenação entre as lideranças de diferentes setores do agronegócio, a partir da visão sistêmica de que qualquer elo afetado pode comprometer toda a cadeia. Aqui também é fundamental o alinhamento de discurso e ação entre o setor privado e público. Ambos têm que estar afinados, e atuando em consonância em relação aos temas sensíveis, como o desmatamento ilegal, que deve ser punido e não representa o agro de verdade.
3º comunicação: o agro precisa se comunicar de forma mais efetiva com a sociedade, no Brasil e no mundo. O país tem tudo para conseguir comunicar uma imagem de um grande protagonista na produção de alimentos, energias e fibras para o mundo e de forma ambientalmente correta.
Qual o papel do investidor no agronegócio?
Segundo Pinheiro, os setores produtivos do agro, especialmente o elo “dentro da porteira” e áreas correlatas, de fornecedores, primeiro processamento e serviços sempre tiveram um crescimento essencialmente orgânico, via debt. “O equity é relativamente recente no agro. A quebra da cultura patrimonialista, a visão do “dono”, o compartilhamento de poder e controle sempre foram entraves à maior participação destes setores do agro no mercado financeiro e de capitais, das ofertas públicas e privadas. Mas este cenário vem mudando, a lógica patrimonialista vem sendo contraposta à da criação de valor. Percebe-se esta mudança cultural nas novas gerações do agro. Entretanto, há ainda um enorme espaço para crescer. Comparativamente com outros setores da economia, as consolidações, fusões, aquisições e start ups ainda estão muito aquém do potencial do setor. A aproximação dos investidores com empresários do agro deve considerar estes fatores. E claro, sendo fundamental a visão de criação de valor sustentável a longo prazo”, pondera.
Outro ponto nessa equação, é a definição do modelo de divulgação de informações ESG, que deve exigir avaliação criteriosa por parte das organizações. As particularidades de cada segmento do agronegócio, bem como a localização geográfica e as demandas e pressões dos diversos stakeholders, são elementos a serem considerados. “Aqui é importante o papel indutor dos grandes players à montante e à jusante da produção rural, que atuam como radar e farol para as cadeias do agro e suas especificidades. As grandes corporações do agro são “telhados de vidro” na sociedade contemporânea, portanto, devem atuar de forma muito profunda em relação às demandas ESG e decodificá-las para o seu conjunto de stakeholders. Exemplos muito claros hoje são as ações de grupos como Marfrig e JBS, que estão definindo protocolos ousados para implementação da rastreabilidade de toda a cadeia da carne (cria, recria e engorda). Tecnicamente não é simples, mas com as novas tecnologias estas ações são cada vez mais factíveis. Envolve vontade política e liderança do setor empresarial”, pontua Cláudio Pinheiro.
Do outro lado, o mercado de investimentos sustentáveis no Brasil ainda não conquistou a relevância e tamanho que atingiu na Europa, Estados Unidos e China. Segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), em 2020, o patrimônio líquido dos fundos que investem em títulos e empresas ESG cresceu 45,9%, alcançando R$817,9 milhões em dezembro. Em janeiro de 2021, esse número chegou a R$1,1 bilhão, valor ainda considerado tímido diante dos R$6 trilhões de patrimônio líquido do mercado. Mas deve crescer muito nos próximos anos, segundo os especialistas.
Filgueiras entende que, para que o agronegócio aumente a produtividade e a produção há necessidade de uma política consolidada para prover quantidade considerável de recursos a cada ano, cujas três principais fontes são: depósitos à vista, depósitos de poupança rural e letras de crédito do agronegócio (LCA). Há necessidade de mais recursos para financiar a safra brasileira, que sucessivamente vem batendo recordes de produção. “Mesmo com o incremento de novas fontes de recursos provenientes do mercado de capitais e dos próprios produtores, alcançar os recursos destinados a investimentos sustentáveis será um diferencial, visto que a política brasileira de crédito rural tem se pautado não apenas no aumento da produtividade do agronegócio, mas no incentivo a atividades sustentáveis, preservando o meio ambiente, conforme previsto no Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas para Consolidar uma Economia de Baixo Carbono na Agricultura, o Plano ABC.
Por outro lado, os investimentos em empreendimentos sustentáveis, na percepção de Claudio Filgueiras, cresceram bastante em todo mundo e, com isso, as práticas ESG tem sido o foco de fluxos consideráveis de recursos ao redor do planeta. “O agronegócio brasileiro, que tem procurado cada vez mais adotar práticas sustentáveis, ainda não conseguiu demonstrar satisfatoriamente o quanto evoluiu nesse tema. Por isso, o Bureau de Crédito Rural Sustentável que está sendo desenvolvido pelo Banco Central do Brasil (BCB), é tão importante. Ele terá como objetivo primordial contribuir para a mitigação de riscos financeiros, além de evidenciar as operações de crédito rural que apresentarem externalidades positivas alinhadas aos objetivos dos investidores focados nas práticas ESG”, diz.
Esse assunto foi abordado no 1º Circuito de Inteligência de Mercado do Agronegócio, intitulado: as mudanças e o novo papel do setor financeiro como articulador das práticas de ESG no agronegócio, que aconteceu em abril. A ANEFAC ainda realizará uma série de eventos na área em 2021. Fique atento as nossas redes.