Hoje, pode-se observar grandes empresas e grandes nomes do mundo empresarial entrando com pedidos de recuperação judicial, ou até mesmo aqueles que já estão neste estágio. E, não só elas, mas empresas de médio e pequeno porte também. No Brasil, a Lei nº 11.101/05, chamada Lei de Falências e Recuperação de Empresas, é atualmente a que disciplina o instituto da recuperação judicial. A temática de como se preparar para a RJ foi discutida em simpósio da ANEFAC no dia 30 de julho.
Com uma abordagem multidisciplinar, especialistas de diversas áreas trouxeram vários olhares, Ailton Leite, vice-presidente adjunto da ANEFAC, Carlos Silva, diretor jurídico e financeiro da ABRH-SP e presidente da LESAP Consultoria Empresarial, Edson Rodrigues da Costa, sócio da KPMG Brasil, Fabiana Coelho, sócia da Dialogus, Guilherme Cavalieri, presidente da ABRH-SP e superintendente do A C Camargo Câncer Center, Henrique Campos, sócio da BDO, Jayme Petra de Mello Neto, sócio coordenador jurídico do Marcos Martins Advogados, e Lilian Primo Albuquerque, vice-presidente de tecnologia da ANEFAC, vice-presidente do conselho consultivo do Instituto Êxito e executiva de negócios da IBM.
A Lei possui uma série de questões que se relacionam tanto a momentos do processo quanto à situação da empresa em si mesma, que se pode chamar Direito de Princípios Materiais. Dentre esses, Mello Neto, acredita que é possível enxergar na Lei uma tríade, conforme abaixo:
- Princípio da preservação da empresa, que não se confunde com a preservação da sociedade empresária. A empresa é entendida não como a pessoa jurídica, mas como a atividade organizada sobre os fatores de produção: capital, insumos, trabalho e tecnologia. Aqui reside o objetivo de preservação da fonte produtora.
- Princípio da manutenção dos empregos, que não é absoluto, se traduz em criar o menor impacto social possível por meio da reorganização. Não significa que não possa existir redução ou readequação do quadro de trabalhadores, mas que dentro do possível, o maior número de postos de trabalho deve ser preservado.
- Princípio da satisfação dos interesses dos credores, que, aos moldes do princípio anterior, importa em atingir soluções que equalizem os créditos existentes, podendo causar eventuais alterações nas condições de pagamento dos referidos créditos.
Para Mello Neto, a recuperação judicial não é voltada a atender à crise exclusivamente causada pela Covid-19. Segundo ele, há um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, atualmente no Senado Federal, que visa esta finalidade, mas se a crise econômica de uma determinada empresa é mais ampla que uma simples influência negativa da pandemia, o mecanismo de RJ ainda se mostra razoável. Já Leite entende que a empresa só deve pedir a RJ quando estiver em situação de caixa deficitária que a impeça do cumprimento de suas obrigações, bem como quando a falta de crédito com fornecedores e com o mercado financeiro e, por fim, quando esta possuir dificuldades para manter os pagamentos dos salários em dia. “Ainda assim, é preciso cumprir e Lei, ter a documentação interna em dia e organizada, ter a contabilidade em dia e escriturada corretamente dentro da Lei seguindo os princípios contábeis e estar localizada no território brasileiro”, pontua.
Em complemento, Mello Neto lembra ainda, que a recuperação judicial não é um expediente legal feito para enfrentar uma crise de insolvência, na qual a liquidez já não suporta o volume de obrigações da empresa. “Ela é um instrumento apto para o enfrentamento de uma crise econômico-financeira, que dá à empresa a chance de se reorganizar em seu ambiente de negócios, reposicionando-se em busca da manutenção da fonte produtiva, manutenção dos empregos e solvência de obrigações, considerados em conjunto”, diz.
Existem alguns sinais comuns de que a atividade da empresa, de acordo com Rodrigues da Costa, pode estar assinalando para um pedido de recuperação judicial, como por exemplo:
– Fluxo de caixa: quando este é constantemente negativo e não há equalização para resolver o equilíbrio econômico.
– Endividamento: quando é severo no curto, médio e até no longo prazo.
– Mercado: quando a operação às vezes pode não ser viável, da forma atual, naquele segmento.
– Credores: há evidente dificuldade de efetivar repactuação das dívidas com os credores de forma privada, dentre outros.
Se preparando para a recuperação judicial
Desta forma, uma empresa deve ser preparada em seus níveis executivos para enfrentar a reestruturação, tendo, previamente, pensado quais os melhores planos, destinos e fatores de ameaça que precisam ser superados. Isto demanda que ela se prepare antes mesmo de procurar o aconselhamento jurídico, tendo ciência que a situação a enfrentar é a crise econômica e não uma simples questão de solvência. A insolvência acarreta inevitavelmente na falência da empresa. Para Mello Neto, a grande dica que temos é a de que a empresa para iniciar a RJ precisa criar uma estrutura prévia de gestão da situação crítica, envolvendo as suas principais gerências: Financeira, Administrativa, Recursos Humanos, Controladoria e Jurídica, previamente a fim de traçar uma estratégia de superação da crise em nível negocial.
Outro ponto observado por Coelho, e para ela, o mais importante, num processo de RJ, é a empresa se preparar com antecedência e assumir o controle da sua comunicação. “Ou seja, aos primeiros sinais de um possível pedido de RJ, a empresa precisa montar o Comitê Estratégico/Crise envolvendo as lideranças e áreas-chave do processo, já definindo as responsabilidades de cada um: Comunicação, Recursos Humanos, Jurídico, Finanças (RI), Compliance, TI e Segurança. É importante que a liderança da empresa entenda os impactos de uma RJ, não apenas nos negócios e na saúde financeira da empresa, mas também na imagem e reputação da empresa e dos próprios executivos. Por isso, a empresa deve construir seu “colchão de credibilidade” ao longo da sua história para que no momento de uma RJ seja respeitada por todos os seus públicos”, adverte.
Jurídico
“O primeiro cuidado é com o próprio custo do processo. A RJ, por si só, já aumenta consideravelmente a carga de custos da empresa, posto que determinará o surgimento de custos com advogados, administrador judicial, controladoria externa e taxas processuais. O segundo fator importante é o de imagem de mercado. A empresa precisa cuidar para que a notícia de ajuizamento não cause um excessivo abalo, comprometendo ainda mais seu crédito e sua imagem. Haverá sempre um certo comprometimento, mas que se bem endereçado por uma boa assessoria de comunicação de crise pode ser bastante mitigado. Terceiro, uma comunicação clara internamente com a equipe operacional, para que a atividade produtiva não esmoreça”, sugere Mello Neto.
Recursos Humanos
“Quanto mais bem estruturada do ponto de vista de gestão de pessoas, maior as chances de uma RJ bem sucedida. Os princípios de RH para uma boa RJ são um bom clima organizacional refletido na confiança e abertura, uma liderança respeitada pelos seus times e políticas de gestão de pessoas centradas no ser humano e que respeitem as diferenças existentes entre as pessoas. É importante incluir os profissionais de RH em todas as decisões estratégicas que serão tomadas. A ativa participação do RH no Grupo Estratégico é fundamental para alinhar as decisões e criar um eficiente processo de comunicação que atinja todos os envolvidos. Os principais cuidados para um eficaz processo de RJ são criar clima de otimismo e abertura que são conquistados através de uma liderança que tenha credibilidade. Portanto, reforçar a capacitação dos líderes e assegurar que estejam executando bem seu papel é de vital importância. Como consideração final devemos lembrar que a coerência deve estar presente todo o tempo”, aponta Cavalieri.
Contabilidade
“As práticas contábeis adotadas no Brasil são convergentes às normas internacionais de relatório financeiro (IFRS), emitidas pelo International Accounting Standards Board (IASB), as quais não incluem um guia contábil específico a ser aplicado pelas entidades em recuperação judicial, diferente das práticas contábeis adotadas nos Estados Unidos, as quais contém tal guia. Entende-se que um pronunciamento específico, neste caso, não seria necessário, pois o conjunto já existente seria suficiente para refletir todos os possíveis impactos contábeis relacionados e percebidos pelas entidades em todas as fases de um processo de RJ. Entretanto, há discussões em curso sobre o tema no Brasil. A documentação contábil e os demais documentos exigidos por lei devem estar em dia. A empresa deve estar preparada para fornecer mensalmente e tempestivamente os balancetes e demais documentos solicitados pelo administrador judicial, os quais devem ser elaborados de acordo com a legislação societária aplicável. Em um ambiente de instabilidade comum em empresas em RJ, o cumprimento de tais obrigações pode se tornar especialmente desafiador. É fundamental que a comunicação interna seja fluida e que a estrutura contábil seja adequada. Vale ressaltar que a adoção precisa dos pronunciamentos técnicos contábeis certamente dará a visibilidade necessária aos participantes internos e externos do processo de RJ, uma vez que demonstrará de forma fidedigna a posição patrimonial, financeira e dos fluxos de caixa da empresa, auxiliando assim, a conquista do turn around almejada pelo ingressar neste processo”, salienta Rodrigues da Costa.
Comunicação
“Duas palavras são fundamentais para o processo de comunicação em qualquer crise e em especial numa RJ: transparência e agilidade. É importante que a empresa se antecipe e pense na comunicação com todos os seus públicos internos e externos. E nesse ponto vale lembrar que estamos falando de um grande número de pessoas impactadas e, por isso, a comunicação precisa ser efetiva e adequada a cada público. É preciso dedicar especial atenção aos funcionários e colaboradores que jamais podem ser informados pela mídia ou pelas redes sociais que a empresa está passando por um processo de RJ. Toda crise pode ser considerada uma oportunidade. Para que isso aconteça, a empresa precisa estar preparada, tentar antecipar todos os cenários possíveis, aprender com as crises, que outras empresas já passaram, e entender que uma RJ não é o fim, e sim o início de uma nova fase. Para isso, o controle da comunicação com todos os públicos e o engajamento da liderança são fundamentais”, entende Coelho.
Conselho estratégico
“Deve ser constituído por pessoas consideradas estratégicas na empresa, independente do cargo que ocupem. Deve ter um Coordenador. Todos têm o mesmo voto e os cargos ficam fora da sala. Este precisa ter acesso a todas as informações contábeis, financeiras, contratuais e operacionais da empresa. Deve ter total liberdade para questionar gastos, contratos, políticas, folha de pagamento, despesas particulares dos acionistas etc. É importante ter um Acordo de Confidencialidade com a assinatura de todos para que as informações sigilosas da empresa sejam preservadas. O Comitê deve ser constituído logo que os primeiros sintomas da crise comecem a fazer parte da rotina diária da empresa. As reuniões do Comitê devem ser, preferencialmente, diárias e com início às 7h e término às 8h, depois desse horário, todos devem ir para suas áreas de trabalho. O RH deve dar treinamento a todos os participantes do Comitê quanto a postura, objetividade nos comentários, evitar longos discursos e, pontualidades nas reuniões. Ter humildade de reconhecer erros, saber reconhecer quando há pontos que todos desconhecem como resolver e que há necessidade de buscar ajuda de técnicos fora da empresa. Todos consultores/técnicos que sejam contratados (ex: negociação com credores, planejamento, advogados etc.) devem estar subordinados ao Comitê”, ressalta Ailton Leite.
Fluxo de caixa
O Fluxo de caixa é fundamental para fazer as projeções de simulações da RJ, obedecendo a Lei, no que se refere ao passivo classificado como Concursal, Extraconcursal e Pós-Concursal. O Comitê deve analisar, questionar e aprovar. O fluxo nunca deve ser feito e analisado por um grupo pequeno e fechado numa sala, pois isso tem sido uma das falhas das empresas. Dessas simulações sairá o veredicto sobre a opção da Recuperação Judicial ou Extrajudicial, bem como o perfeito entendimento se não há mais opções e resta para a empresa, a insolvência”, aponta Ailton Leite.
Conhecimento, punições e multas na RJ
A recuperação judicial é um processo extremamente eficaz para a reorganização da empresa se ajuizado no tempo certo e com a vocação de todos os envolvidos em superar a crise econômica. “É um erro pensar na RJ como uma simples ferramenta moratória, como era o regime anterior da concordata. Se assim for considerada, rumará não para a superação e recuperação da empresa, mas, sim, para a inevitável falência. E, sob o ponto de vista jurídico, reforço o alerta: o processo de recuperação judicial tem que ser dirigido por uma banca especializada. O advogado generalista não tem aptidão para conduzir este tipo de procedimento, que demanda múltipla atuação em ramos diferentes do Direito”, completa Mello Neto.
Quando o assunto é responsabilidade, a Lei 11.101/05 prevê a responsabilização penal nos casos de adulteração dos balanços ou de inutilização das informações, com penas de até seis anos de reclusão. Como exemplos de condutas passíveis de punição, Henrique Campos, cita as seguintes:
- atos de “contabilidade paralela”;
- uso do caixa da empresa para pagamento de despesas pessoais dos dirigentes;
- despesas lançadas sem suporte documental, dentre outros.
“Quando os administradores ou contadores atuam com imprudência, negligencia ou imperícia, além de estarem sujeitos a responsabilização penal, eles podem prejudicar o processo de recuperação judicial, pois os credores, o juiz, ministério público e demais envolvidos poderão perder a confiança na empresa devedora e votar pela falência da mesma e/ou a saída do atual controlador da empresa em recuperação judicial. Por isso, é fundamental que todos conduzam com zelo, diligência e honestidade ao longo de todo o processo. Ademais, as empresas devem estar financeiramente preparadas para os custos relacionados ao processo de RJ (custas, administrador judicial, advogados etc.), além de ter em mente as prováveis restrições de acesso ao crédito, fiscalização das atividades pelo administrador judicial e demais restrições impostas por este processo. Caso o PRJ não seja aprovado pelos credores, convola a RJ em falência”, relata Henrique Campos.
De acordo com ele, na medida do possível, com base nas ferramentas de gestão à disposição, das quais ressalta a contabilidade, os tomadores de decisão devem buscar evitar a recuperação judicial, revisando as suas estruturas de custos e despesas e reestruturando as suas operações do “chão de fábrica”, reavaliando seu portfolio e estratégia de mercado, ao ponto de criar um plano de remodelação com novas perspectivas que possibilitem que a empresa tenha uma perspectiva de geração de caixa sustentável. Para isso, é bastante provável que a empresa necessite renegociar as suas dívidas ou de novos aportes de capital, o que pode ser difícil de conseguir, considerando os sinais negativos que mencionei anteriormente. Entretanto, de posse de tal planejamento, a empresa teria mais condições de buscar a renegociação das dívidas com seus credores. Além disso, com tal sinalização positiva, a empresa pode abrir alternativas, como por exemplo angariar novos parceiros e investidores.
Para finalizar, Leite, avalia que a empresa nunca deixe para a última hora o planejamento da RJ. E jamais espere a falta de estoque e de capital de giro, esteja com inadimplência elevada e por aí vai. “Empresários devem sempre estar conscientes que a RJ não é uma doença, é o remédio. O remédio tardio não recupera o doente. O remédio em dose errada pode matar”.