Uma reflexão necessária, que se faz a partir desta experiência da pandemia e que deve dirigir as próximas ações das organizações a respeito da adoção da transformação digital, é a discussão sobre qual é o valor de cada tecnologia digital para seu negócio, de maneira particular
Transformação digital é, provavelmente, um dos termos mais discutidos pelos executivos e pelas organizações nos últimos anos. Ainda que não seja um fenômeno tão novo (estudos já faziam referência nos começos dos anos 2000), mais recentemente é que os estudiosos e os profissionais conseguiram definir com um pouco mais de clareza sobre o que o termo significa. O professor Gregory Vial, da HEC Montreal, em um recente artigo de 2019, definiu a transformação digital como “um processo onde as tecnologias digitais criam disrupção, requerendo respostas estratégicas das organizações que buscam alterar seu caminho de criação de valor ao mesmo tempo em que gerenciam as mudanças estruturais e as barreiras culturais que afetam de maneira positiva ou negativa este processo”.
Em seu aspecto mais prático, a transformação digital envolve a adoção e o uso das chamadas tecnologias digitais como, por exemplo, inteligência artificial, blockchain, computação em nuvem (cloud), biochips, internet das coisas, drones, dispositivos móveis, entre outras. Além das tecnologias, há também um conjunto de práticas, adotadas pelas organizações, que mudam o mindset para uma cultura de inovação, de experimentação e de colaboração. De fato, existe ainda uma certa confusão entre quais tecnologias e quais práticas implementam realmente uma transformação digital, então não é incomum às vezes se ouvir em palestras ou em lives que “nossa empresa implantou SAP e BI e agora estamos na onda da transformação digital”, o que é algo equivocado.
Este movimento da transformação digital vem ocorrendo mundo afora há pelo menos uns cinco anos (principalmente a partir do anúncio da implantação da Indústria 4.0 como uma ação governamental, na Alemanha). Em janeiro de 2019, o Gartner Group destacou que as organizações investiriam em tecnologia da informação e comunicação um valor aproximado de US$ 3,8 trilhões neste mesmo ano, principalmente em novas tecnologias digitais como computação em nuvem (Cloud) e internet das coisas (IoT – internet of things). Estimativa mais recente do IDC (International Data Corporation) avaliou que serão investidos aproximadamente US$ 7,4 trilhões pelas organizações em TD durante os anos de 2020 a 2023, também em um escopo global, o que nos leva a crer que a transformação digital representa uma das mais importante decisões de investimento nas organizações dos últimos tempos.
Várias pesquisas demonstram que já havia ao redor do mundo iniciativas para acelerar a transformação digital, mas o surgimento da pandemia da Covid-19 mais recentemente parece ter acelerado ainda mais este movimento por parte das organizações. A pandemia trouxe consigo uma nova realidade às pessoas e às organizações, por causa da necessidade de se fazer o distanciamento social. Por conta disto, algumas organizações não tiveram outra saída a não ser adotar algumas tecnologias digitais para manter suas operações, enquanto outras reforçaram tecnologias que ainda estavam em análise ou sendo utilizadas de maneira tímida. O fato é que, aparentemente, houve uma aceleração da transformação digital no Brasil de algumas tecnologias, mas não se tem ainda relatos suficientes e confiáveis de como tem se dado esta aceleração.
Tentando descobrir o que realmente foi acelerado em relação às tecnologias digitais nas organizações no Brasil, realizamos uma pesquisa com profissionais e executivos do mercado perguntando sobre quais tecnologias foram adotadas durante a pandemia. Para garantir um bom entendimento da situação, perguntamos também quais tecnologias já eram utilizadas ou estavam sendo adotadas, antes da pandemia, e quais serão adotadas quando acabar a pandemia. Assim, conseguimos obter uma visão temporal mais aprofundada sobre a adoção das tecnologias digitais por conta da Covid-19. Esta pesquisa faz parte de um projeto de pesquisa em andamento no TDS (Techonology and Data Science), que é o departamento de pesquisa em tecnologia da informação e comunicação na EAESP/FGV. A pesquisa foi realizada em junho, deste ano, através de plataforma on-line e foram convidados mais de 2.500 participantes. Nossa amostra é composta de 119 respondentes, a maior parte deles executivos de mercado provenientes de grandes empresas e da região Sudeste.
A partir dos dados consolidados e das análises estatísticas feitas, identificamos alguns insights interessantes sobre como a transformação digital tem sido acelerada durante a pandemia. Uma primeira descoberta importante é que 40% das respostas indicam que algumas tecnologias digitais já eram utilizadas ou estavam em processo de adoção pelas organizações. As mídias sociais (48,2%), a computação em nuvem (46,45%) e o big data e data analytics (41,1%) foram as tecnologias citadas como as mais utilizadas. Em relação às tecnologias digitais para as quais as empresas já empreendiam ações para sua adoção antes da pandemia, identificamos que a inteligência artificial (25%), o blockchain (24,1%) e as mídias sociais, o mobile e a virtualização ou digitalização de processos (estas com 22,3%) estavam no topo das intenções das organizações antes da pandemia, o que nos dá indícios de que a inteligência artificial e o blockchain, principalmente, são as tecnologias digitais que estão em consolidação.
Com relação às tecnologias digitais e sua aceleração especificamente durante a pandemia, os dados da pesquisa apontam que houve uma baixa aceleração, dado que apenas 5% das respostas indicam que ações foram empreendidas para a adoção de tecnologias ou passaram a ser utilizadas de fato pelas organizações. Este resultado contraria de certa forma a percepção que se tem no mercado de que a transformação digital teve uma aceleração forte entre as organizações. De maneira efetiva, houve uma aceleração tímida entre as tecnologias que suportam trabalhos remotos (com 13,4% e 14,3% para ações empreendidas e utilização das tecnologias, respectivamente) e virtualização ou digitalização de processos (que representam 5,4% e 7,1% para ações empreendidas e utilização das tecnologias, respectivamente). A conversão de produtos físicos em produtos digitais alcançou o índice de 12,5% em relação às ações empreendidas para a adoção da tecnologia, mas com um baixo índice de utilização (apenas 0,9%). Dada a dificuldade das organizações em enfrentar o distanciamento social imposto pela pandemia, não é de se estranhar que estas tecnologias digitais tenham sido as mais citadas uma vez que possibilitam reestabelecer a operação das organizações.
Com relação às tecnologias digitais a serem adotadas após a pandemia, se identificou que há apenas 8,4% do total de respostas (o que em nosso entendimento pode significar que as organizações perceberam a necessidade de adotá-las em suas operações a partir da experiência da pandemia e dos desafios experimentados). A inteligência artificial (18,8%), a realidade aumentada (15,2%) e a robotização de processos e big data e data analytics (ambas com 13,45%) foram as tecnologias mais citadas como futuras implementações nas organizações.
Tomando como base os resultados apresentados, nos parece adequado afirmar de que não houve de fato uma forte aceleração da transformação digital entre as organizações brasileiras durante a pandemia da Covid-19. Isto ocorre porque em parte algumas tecnologias já estavam sendo utilizadas ou estavam em adoção, assim como outras tecnologias dependem de vários fatores que não puderam ser desenvolvidos durante a pandemia (por exemplo, infraestrutura, conectividade, segurança da informação, expertise sobre as tecnologias, mão de obra disponível, questões legais, entre outros). Há também as tecnologias que representam ações mais estruturantes e demandam projetos de médio/longo prazo (como blockchain e internet das coisas, por exemplo) ou são mais específicas em suas aplicações (como impressão 3D e biochips, por exemplo) e, portanto, não foram aceleradas.
Uma reflexão necessária, que se faz a partir desta experiência da pandemia e que deve dirigir as próximas ações das organizações a respeito da adoção da transformação digital, é a discussão sobre qual é o valor de cada tecnologia digital para seu negócio, de maneira particular. Dada a variedade de tecnologias, os custos de implementação, a curva de aprendizado e a necessidade de gerar uma experiência significativa para os clientes, os líderes e gestores naturalmente deverão refletir sobre que tipo de transformação digital sua organização necessita, sob pena de se desperdiçar recursos financeiros sem obter os benefícios pretendidos.
Artigo escrito por Cláudio Luís Carvalho Larieira, João Luiz Becker e Diogo de Azevedo Vasconcellos, pesquisadores do TDS – Technology and Data Science -, da EAESP/FGV.