Em 2020 o crescimento do PIB será negativo. Entraremos em 2021 com desemprego em alta, contas públicas desarranjadas e com turbulência política. Mais do que nunca se faz necessário o corte de custos, maior eficiência e produtividade do governo e consolidação política para atração de investimento privado
Tentar separar os diversos aspectos de uma questão é importante para podermos analisar cada componente e as relações de causa e efeito. Claro que é o conjunto que vale, a soma de todos e a interação entre eles. Mas se não separarmos um pouco as coisas, fica tudo uma feijoada só. A crise que estamos vivendo teve origem na saúde, com implicação inicial financeira, evoluindo para uma grave crise econômica. A origem não foi de ordem econômica e nem política, como a de derivativos ou crises de países, sejam internas ou externas. Isso faz uma diferença enorme. Uma profunda crise de saúde muda comportamentos sociais e hábitos de consumo, com efeitos mais duradouros.
Se considerarmos que no Brasil a crise se instalou mesmo a partir da segunda quinzena de março, agora foram completados 90 dias, entre o seu início e a grave situação atual. Muito pouco tempo. Em um primeiro instante, se imaginou que a crise de saúde pudesse ser mais curta (país tropical, calor e baixa densidade populacional, quando comparada à Europa, longe dos epicentros europeu e chinês etc.), o que implicaria em um período curto de isolamento, a manutenção dos hábitos e comportamentos quando terminasse, e com um reflexo mais financeiro para empresas, cidadãos e estado, representando mais um problema pontual, principalmente de caixa. Mas quanto mais o tempo foi passando, com a saúde se agravando e o isolamento se estendendo no tempo e nas regiões do país, as perspectivas de mudanças de hábitos e comportamentos se acentuaram. O problema financeiro e pontual passou a se tornar econômico e mais sério, com graves consequências afetando não só o ano atual, mas também os seguintes.
Isto fez com que as empresas demitissem, deixassem de contratar e reduzissem jornadas e salários. O resultado: mais de 1,1 milhão de empregos (CAGED) se perdeu entre março e abril e mais de 5 milhões de pessoas se juntaram à massa de desalentados, aqueles que deixam de procurar emprego (quais as chances hoje?) e não entram nas estatísticas. O desemprego oficial subiu para mais de 12% e se contarmos os desalentados, nessa categoria, o desemprego real passaria dos 17%. Sem falar dos que tiveram jornada e salário reduzidos, que ainda correm o risco de serem demitidos, quanto mais o tempo passa e as perspectivas se agravam. Tem ainda os autônomos, domésticas e afins, que estão se virando para terem alguma remuneração. A renda média dos que continuam empregados aumentou, significando que os que mais perderam emprego foram os de salário menor, menos qualificados.
As empresas também sofreram um impacto enorme. A face mais evidente disso é o varejo, com as lojas fechadas. Claro que teve o aumento do comércio eletrônico, mas nem de longe supera o volume de vendas que havia nas lojas. Alguém tem que produzir o que se vende, mas se não se está vendendo, para quem produzir? Os serviços, que representam mais de 70%, do PIB, sofreram um impacto expressivo. Salva-se a agricultura, com a melhor safra histórica atingindo 245 milhões de toneladas de grãos e os preços se mantendo. Mas responde por pouco mais de 5% do PIB.
Com isso, a projeção é de queda de algo entre 7 a 8% do PIB em 2020, podendo até ser maior. Mas nem toda a culpa é da pandemia. Entramos em 2020 sem tração. O quarto trimestre de 2019 apresentou resultado positivo, mas pior do que o do terceiro trimestre. Basicamente, crescimento de 0,5% contra 0,6%. A maior surpresa foi a formação bruta de capital fixo (FBCF), que se relaciona com investimentos produtivos, caindo 3,3% com relação ao trimestre anterior, tendo a construção civil retraído 2,5% no mesmo período. Assim, os sinais de que o caminho para o crescimento ainda não estava pavimentado ficaram mais evidentes. Já em meados de janeiro, enquanto o mercado ainda esperava crescimento de 2,3% em 2020, nossa estimativa já havia se reduzido para 1,8%, por conta dos sinais dos últimos meses de 2019 e pela constatação das dificuldades políticas. Havia a clara percepção das dificuldades de se viabilizar reformas, principalmente a administrativa, e ficava cada vez mais clara a falta de sintonia entre os poderes (executivo, legislativo e judiciário) e na vertical do executivo, entre governo central e estados.
Tudo isso dificulta a confiança na economia e reduz a atratividade de novos investimentos. A partir do final de março as previsões foram piorando. O PIB do primeiro trimestre de 2020 caiu 1,5% com relação ao último trimestre de 2019. Subiu só 0,9% com relação ao primeiro trimestre de 2019. A crise contribuiu com cerca de 17% deste período, ou seja, uma quinzena de março com relação às seis quinzenas do trimestre. Está claro que o tombo maior virá no segundo trimestre, com mais de 11% de queda. Se considerarmos uma recuperação já a partir de julho e supondo um crescimento do PIB no terceiro trimestre de 1% e de 2,5% no quarto trimestre, com todas as dificuldades apontadas o ano de 2021 terá um crescimento razoável para os padrões históricos, mas muito abaixo do necessário para se recuperar uma parte expressiva do tombo de 2020. Mesmo considerando a base que estará muito baixa, o crescimento deve ficar abaixo de 3%, talvez algo entre 2 e 2,5%. Os desafios são altos. Desemprego alto, contas públicas desarranjadas e turbulência política não são uma boa combinação.
Em termos de termômetro maior do governo, a relação dívida bruta/PIB estava em cerca de 75%, com o governo tentando diminuir este número. Para 2020 há a autorização para um déficit primário (o resultado de receitas e despesas sem considerar o pagamento de juros da dívida) de cerca de R$ 124 bilhões. O governo esperava ter um resultado negativo melhor, de cerca de R$ 115 bilhões. Até agora, entre redução de receitas pela queda do PIB e aumento de despesas para o combate à pandemia, são cerca de R$ 600 bilhões a menos no resultado. Ou seja, na melhor das hipóteses, o país termina o ano com um rombo não de R$ 115, mas sim de R$ 715 bilhões. Podendo chegar até R$ 900 bilhões, dependendo das prorrogações de programas de apoio e piora do desempenho da economia.
Só para se ter ideia do tamanho disso, toda a economia com a reforma da previdência, que causou tanta controvérsia e dificuldade, para um período de 10 anos totaliza algo entre R$ 800 e R$ 850 bilhões. Com isso, a relação dívida/PIB deve ultrapassar os 100%. Há países desenvolvidos com valores, como EUA 107%, França 98%, Reino Unido 81% e até Japão com 238%, antes da crise. Por outro lado, na Alemanha é 60%. Mas países emergentes deveriam perseguir algo menor que 50%. Antes da crise Chile tinha 28%, Colômbia 50%, México 46%, África do Sul 68%, Índia 70% e Rússia 15%). Para voltarmos a ter a relação de hoje de 75% levaremos mais de uma década. Outro ponto é que, independentemente da avaliação do país em si, há a restrição legal de teto de gastos. Para 2021, com uma inflação baixa em 2020 (o reajuste do teto é a inflação acumulada de 12 meses até junho do ano anterior, ou seja, de 2020), o teto já estaria comprometido. Ou seja, as contas públicas terão que ser arrumadas, buscando um superávit primário que permita a redução da dívida pública. Devido a já alta carga tributária do país, comparada com a de outros países emergentes e mesmo alguns desenvolvidos (Brasil 35%, Chile 18%, Colômbia 23%, México 29,7%, Alemanha 40,6%, França 44,6%, Reino Unido 39% e EUA 26,9%) o caminho já apontado passa por redução das despesas, reforma administrativa e privatizações.
O governo terá que entregar mais com menos recursos, ou seja, ser melhor e mais eficiente. Conseguirá? A saída da crise passa pelo investimento privado. E, para isso tem que haver confiança no desempenho do governo, tanto econômico quanto político, lembrando que já em 2022 teremos nova eleição para presidente. Nos últimos 70 anos, o Brasil teve 22 presidentes, oito dos quais eleitos pelo povo e, até agora, só quatro terminaram os seus mandatos. Se considerarmos apenas o período após a volta das eleições diretas em 1990, e excetuando o atual presidente, foram quatro presidentes eleitos pelo povo e apenas dois cumpriram seus mandatos integralmente. Metade. Nos períodos de maior turbulência há sempre muitos embates entres os poderes e reflexos ruins na economia.
Por enquanto, a equipe econômica tem mostrado competência e disposição para lutar pelo que é preciso: corte de custos, maior eficiência e produtividade do governo e aperfeiçoamento para atração de investimento privado. Os juros básicos estão em um patamar muito baixo, 2,25% agora em junho. É provável que haja até mesmo alguma redução adicional que leve para 2,0 ou mesmo 1,75% até meados de setembro. Pelas regras atuais, com o mandato para que o Banco Central (BC) faça a inflação convergir para a meta, com a inflação deste ano e de 2021 apontando para abaixo da meta, a diretriz seria mesmo de reduzir ainda mais os juros. Apesar da pandemia provocar efeitos negativos, tanto sobre a demanda como sobre a oferta, ainda assim o resultado é no sentido de reduzir a inflação. Juros baixos, além da vantagem de incentivar o consumo e os investimentos, permite que o país economize muito em juros pagos para a rolagem da dívida. A discussão sobre o limite do “piso” da Selic, considerando os países desenvolvidos terem tido taxas até negativas, tem que ser acompanhada da discussão sobre o efeito nos fluxos de capitais para o país e prêmios de risco, bem como no resultado da taxa de câmbio. Por isso, o “piso” pode ser que seja algo superior a 1,5%, a depender do comportamento fiscal do país. Também se fala do BC utilizar o “afrouxamento monetário” ou Quantitative Easying (QE), que com a crise de 2008 foi muito utilizado pelos EUA e depois pelo BC Europeu, como forma de melhorar a situação de empresas e do crédito em geral com a compra de hipotecas, debentures e outros títulos privados pelos bancos centrais. Já foi declarado pelo presidente do BC que isso só será utilizado após esgotada a política monetária.
Para as empresas o crédito ficou restrito. No início da crise uma tomada adicional de crédito pelas grandes empresas, com mais garantias e menor risco para os bancos. Em seguida, com a piora da crise, o crédito quase que sumiu, com exceção de segmentos e empresas específicas. Em geral ou o risco é alto ou sequer se consegue precificá-lo, e os bancos preferem se retrair. Como alguém está quando entra em uma crise diz bastante sobre como poderá estar ao sair dela. Vale para governos, empresas e pessoas. No caso das empresas, é decisivo quanto tinha de caixa, quanto estava alavancada e como era a sua relação com os bancos. Faz muita diferença. Empresas que entraram na crise sem caixa, confiando em capital de giro obtido por eventual desconto de duplicatas etc. ficaram com dificuldades, principalmente se os bancos não estenderam a mão neste momento.
Daqui para frente todos considerarão este ponto adicional ao definir o caixa ótimo. Manter caixa custa, mas é um seguro. Também considerarão alongar prazos de empréstimos e financiamentos. Custo do dinheiro aleija, mas o prazo mata. Outro ponto é ter mais flexibilidade na operação, com menos custos fixos e menos investimentos físicos. Por outro lado, subirão os investimentos tecnológicos. O desafio será maior para as empresas afetadas pela mudança de comportamentos e hábitos dos consumidores, como disse no início. Terão que repensar seus negócios.
E mesmo com tudo isso a bolsa segue recuperando e batendo recordes, podendo até chegar em breve aos 100 mil pontos, impulsionada por investidores brasileiros. O dólar que chegou a 5,90 está abaixo 5,5 podendo encostar no 5,0. Rentabilidade baixa por conta do nível da Selic atual impulsionando investidores para maior risco e fazendo pressão sobre preços? Ou o monstro não é tão feio (ou horroroso) quanto parece e virá uma rápida recuperação? Lembrando ainda que daqui a pouco mais de dois anos teremos uma nova e importante eleição e a previsão é de chuvas, trovoadas e alta volatilidade. Senhores, façam as suas apostas.
*Artigo escrito por Andrew Frank Storfer, que é conselheiro da ANEFAC