Segunda-feira, 23 de outubro de 2017. Nesse dia, a cidade de São Paulo registrou um congestionamento atípico. O índice de lentidão, na parte da tarde, ficou mais do que o triplo acima da média dos dias comuns. Só a Avenida 23 de maio, ligação entre o centro e a zona sul, teve 8,7 km de lentidão na parte da tarde. O motivo? Nada a ver com acidentes, manifestações ou chuva. Na realidade, um companheiro habitual no trânsito: o Waze, que apresentou falhas durante o dia. Diversos usuários do aplicativo relataram ter enfrentado problemas ao seguir a rota sugerida, que insistia em jogá-los na travada 23 de maio. Levou-se três horas da Avenida Paulista a Congonhas, um trajeto que costuma demorar tipicamente entre 20 e 45 minutos[1].
Esse fato mostrou o grande poder que essa empresa, na época com menos de 10 anos de idade, tinha. Como que um bug em um aplicativo gratuito pode triplicar o trânsito de uma metrópole como São Paulo?
A resposta está no estudo do modelo de plataformas (ou ecossistemas). Trata-se de um novo modelo de negócios, dominante em empresas de tecnologia, que consiste em desenvolver um padrão que atraia fornecedores e consumidores de um produto ou serviço e cobre, em geral pouco, sobre as transações geradas a partir dessas conexões.
Desde 2016, as empresas que utilizam esse modelo em parte ou totalidade de suas estratégias de negócio figuram entre as mais valiosas do planeta (veja figura abaixo).
Coincidentemente, a partir de 2016 surgiram especulações sobre eleições para presidentes e outros cargos sendo influenciadas por plataformas como o Facebook[2]. Como professor, costumamos falar que estamos preparando nossos alunos para resolver problemas que ainda não existem. Pois bem, quais problemas surgem com a criação dessas gigantes de plataformas?
Um dos maiores desafios é como lidar com dilemas éticos. Afinal de contas, elas controlam uma massa de dados que lhes dá um poder muito grande. E aqui o assunto entra em terreno pantanoso. O Google sempre foi famoso por ter em seu código de conduta o princípio “Don’t be Evil” (não seja mau, em tradução livre). Mas, será fácil discriminar o que é ser bom e mau em todas as situações? Veja uma lista de reflexões:
- É ético um marketplace priorizar nos resultados de buscas de seus clientes produtos que lhe tragam maior rentabilidade?
- É ético um aplicativo de “carona” cobrar mais caro pela corrida se detectar que a bateria do cliente está perto do fim?
- É ético colocar microchip em um funcionário, ou tecnologias “vestíveis”?
- E usar dados dos celulares dos cidadãos para cobrar impostos?
- E deixar o microfone do dispositivo (ex. celular) ligado ouvindo as conversas do usuário para coletar (e depois vender) seus dados?
O incidente com o Waze, ocorrido em 2017, teve um ar premonitório. Nesse ano, o tema do congresso da ANEFAC, em Barra Bonita, foi a economia compartilhada e o futuro do emprego. O que não sabíamos era que tinha muito mais por vir em relação a esse tema (e adjacências), que dominou os debates dos congressos de 2018 e 2019, com assuntos correlatos. A questão dos dilemas éticos da transformação digital será o mote do Congresso de 2020. Venha ajudar a responder conosco as perguntas acima (e muitas outras que estamos preparando) em um painel interativo e imperdível que estamos preparando com professores de negócios e filósofos.
Em tempo, o Google retirou o a frase “Don’t be Evil” do seu código de conduta algum dia entre abril e maio de 2018[3].
Artigo escrito por David Kallás, que é sócio da KC&D, professor no Insper e head de Administração da ANEFAC e frequenta o Congresso ANEFAC desde 2003.
[1] Fonte: adaptado de https://exame.abril.com.br/tecnologia/falha-no-waze-por-ter-ajudado-a-triplicar-transito-em-sao-paulo/
[2] Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-37961917
[3] Fonte: https://gizmodo.com/google-removes-nearly-all-mentions-of-dont-be-evil-from-1826153393