Impulsionada pela legislação, era do compliance impacta todas as áreas e profissionais
Desde a aplicação da Lei Anticorrupção, 265 empresas foram autuadas no Brasil e mais de R$ 333,1 milhões foram gerados em multas de acordo com o Portal da Transparência do Governo. A “mãe” das leis anticorrupção é a Lei Americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) promulgada em 1977, a segunda mais conhecida é do Reino Unido, UK Bribery Act de 2010. Por fim, temos a brasileira a Lei 12.846/13, ou Lei da Empresa Limpa, em vigor há sete anos (janeiro de 2014 e seu respectivo Decreto 8.420/2015).
“Os pontos mais atuais estão associados a FCPA, cuja atualização ocorreu em junho de 2020 na publicação do Department of Jusitce (DOJ) sobre a avaliação do Programa de Compliance. O órgão fez algumas mudanças que incluem: diligência anticorrupção após a fusão e/ou aquisição, monitoramento das investigações internas e aplicação de medida disciplinar, treinamento contínuo para o time de compliance, atualizações, acessos e rastreabilidade das políticas e procedimentos, dentre outras”, explica Fernanda Flores, sócia de Forensic & Litigation da KPMG, que palestrou no 2° Circuito da Transparência: O impacto da lei anticorrupção nos negócios, realizado em 28 de julho.
A criação dessas leis foi um marco para a evolução da ética corporativa, principalmente no Brasil. Isso porque, para Marina Mantoan, diretora executiva da área de Forensic da EY Brasil e que também palestrou no evento, à medida que aumentam as cobranças e exigências das autoridades e os possíveis danos por eventuais descumprimentos, as empresas passaram a aumentar atenção sobre isso. Na visão dela, um dos maiores legados é a promoção da discussão na sociedade sobre ética, principalmente nos negócios, seus impactos e, consequentemente, o incentivo ao combate à corrupção e outras práticas ilícitas danosas à sociedade e às empresas.
“A ética, hoje em dia, certamente é uma vantagem competitiva. Um ambiente de negócios transparente e ético é importante para construir e manter a boa reputação de uma empresa no mercado, com clientes, parceiros, terceiros e acionistas, além de evitar que ela sofra com diversos tipos de punições, como multas, sanções, exposições negativas e eventual falência. A reputação de uma empresa ética permite atrair e reter talentos e clientes. Construir um ambiente íntegro e ético é a base para o sucesso nos negócios”, diz Mantoan.
Ao complementar, Flores entende que, uma das principais questões positivas da lei é a responsabilidade objetiva que determina que a empresa não precisa provar a culpa, basta provar que foi ou seria beneficiada pela ilicitude. Além disso, às licitações e contratos com o governo, no que diz respeito a frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro. “Adicionalmente, às questões legais, tem o impacto na governança e na mudança de cultura, que nos provoca como cidadãos a não mais tolerar a corrupção como se algumas cortinas tivessem sido abertas, mostrando as faces da corrupção. Destaco, ainda, uma competição comercial mais justa no sentido de “fair play”, aumento da confiança no Brasil em termos de investimento estrangeiro e o impacto financeiro. Os números falam por si, até o momento os acordos de leniência somam R$ 15,33 bilhões, explica.
Quanto ao avanço da integridade, Mantoan acredita que, desde o advento, a Lei Anticorrupção impulsionou muito o ambiente de controles, por exemplo, logo após o início da vigência da lei, a tendência para o mercado era a implementação de Programas de Compliance, já que poucas empresas o tinham. Anos depois, com a maioria das grandes empresas tendo seus programas implementados, temas como investigações, monitorias e avaliação da maturidade de programas vigentes estão mais na agenda dos executivos.
Hoje em dia, como um próximo estágio de avanço do cenário de anticorrupção, o aprimoramento e automação dos controles e, consequentemente, do monitoramento, aumento das exigências de comprovações de integridade, que vão desde treinamentos, capacitações do conselho aos terceiros, seja para participar em licitações ou atuar como fornecedor em empresas privadas como fornecedor, entre outros cenários.
“Pela atuação das autoridades brasileiras e internacionais, acredito que veremos mais autuações e monitorias de programa de compliance, que fomentarão ainda mais a ética nos negócios e o alcance, se estendendo a todos os tipos de empresas, incluindo as menores, como empresas familiares. Em muitos casos, eventualmente elas ainda não se encontram completamente adaptadas em termos de controles internos e ações de prevenção e mitigação de riscos de integridade”, aponta Mantoan.
No que se refere ao ponto negativo, alguns setores foram fortemente impactados em decorrência das investigações de corrupção, como por exemplo, a construção civil e infraestrutura. Mais de 4,4 milhões de postos de trabalho foram eliminados com a Operação Lava-Jato. Com as cortinas da corrupção abertas, o Brasil também sentiu uma grande redução na arrecadação de impostos a serem recolhidos aos cofres públicos, já que muitas empresas fecharam suas portas decretando falência ou recuperação judicial.
Vale lembrar ainda que as instituições financeiras, de um modo geral, têm melhorado o seu programa de PLDFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo). Mas sempre tem espaço para avançar. Um grande problema hoje em algumas instituições é o tempo de resposta das requisições de afastamento de sigilo bancário, o que por vezes atrasa muito as investigações.
Multas e punições nas esferas judicial e administrativa estão crescendo
Com a aplicação da Lei 12.846/13, as empresas passaram a responder na esfera civil e administrativa e estão sendo responsabilizadas pelas violações cometidas, o que não acontecia antes. A partir das investigações, muitos executivos foram condenados e encarcerados com base no Código Penal por atos de corrupção.
O Ministério Público Federal (MPF), atua na esfera judicial, e a Controladoria Geral da União (CGU), na administrativa, são os órgãos responsáveis pela fiscalização da lei. Os dois agem de forma igual e com a mesma representatividade, porém em áreas diferentes. Os acordos de leniência têm sido estruturados de uma forma muito parecida com o formato americano, que inclui monitoramento periódico executado por um especialista independente.
No ranking, segundo dados do Portal da Transparência, as empresas que mais têm multado são Correios, Prefeitura do Rio e Petrobras. Em geral, as multas aplicadas são derivadas de investigações internas que, na maioria das vezes, estão associadas às alegações reportadas nos canais de denúncias ou em qualquer outro meio de comunicação e/ou por meio de auditoria dos tribunais de contas, como por exemplo, o TCM, TCE ou TCU (Tribunal de Contas do Município, Estado ou União). Na sua maioria, as investigações são sigilosas e os detalhes da violação não são publicados, mas as multas e as sanções são públicas e estão no Portal.
Cada investigação tem sua peculiaridade. No geral, Adalto Machado, delegado da Polícia Federal e que palestrou no 2° Circuito da Transparência, explica que, eles contam com órgãos parceiros (TCU, CGU, RF etc.), que encaminham as informações iniciais de crimes identificadas nos trabalhos de fiscalização desses órgãos. Para todas são instaurados inquéritos policiais, que é o meio adequado de se realizar uma investigação criminal de acordo com Lei 12.830/2013.
“As multas administrativas são aplicadas pelos órgãos de fiscalização. A Polícia Federal cuida da parte criminal, ou seja, das condutas das pessoas físicas responsáveis pelos atos ilícitos identificados que são tipificados como crime. Uma das penas possíveis é a aplicação de multa, por juiz na sentença, só que ela não se confunde com a multa administrativa. A criatividade da criminalidade é grande. Basicamente, são pedidos de vantagem indevida para que o funcionário público aprove algo ou ignore ilicitudes identificadas. Processos licitatórios direcionados também é muito comum”, relata Machado.
A era compliance
Considerando que a Lei Anticorrupção se aplica à todas as empresas e, partindo do marco de sua promulgação até os dias atuais, elas estão criando ou aprimorando seus programas de compliance. Para Marina Mantoan, àquelas engajadas, impulsionadas pela lei, vêm contribuindo cada vez mais para criar um ambiente de negócios melhor no Brasil, estão, por exemplo, implementando canais de denúncias, levando à cabo as investigações que possam surgir, apresentando maior preocupação com a transparência, desde comunicações a registros contábeis, fomentando a educação quanto a princípios éticos e de conduta.
“Não podemos esquecer que, enquanto o programa de compliance possui diversos elementos e pode variar de acordo com cada empresa, sendo influenciado pelo setor, negócio, geografia, modelo operacional, regulamentação local e global, o programa anticorrupção é um elemento dentro do programa de compliance, em conjunto com outros elementos, como combate à lavagem de dinheiro, proteção de dados, conflito de interesses, direitos humanos e antitruste”, pondera Fernanda Flores.
O Decreto 8.420/2015 descreve 16 parâmetros para um Programa de Compliance efetivo, sendo que o primeiro deles é “tone at the top” – “Conselho e administração demonstram apoio claro e inequívoco”. Para Flores, não há dúvida que só pode ser efetivo se tiver o comprometimento e apoio da alta administração, a liderança da companhia é fundamental para essa efetividade. “Com todas as questões ESG em destaque, ainda que seja muito importante no papel, onde estão as políticas, se a alta gestão não se envolver não funciona, pois existem as ferramentas, mas não o poder decisório”, alerta Eduardo Depassier, diretor jurídico da ANEFAC e sócio no Levi Depassier Advogados, que foi o responsável pelo 2° Circuito da Transparência.
É importante destacar que a corrupção pode surgir de qualquer nível da empresa, mas nem sempre está ligada somente à alta administração. Certamente, a alta administração tem grande papel na prevenção à corrupção. “No compliance temos o chamado “walk the talk”, uma expressão que quer dizer, viver o código de conduta que pregam aos seus colaboradores. Algumas das formas mais eficazes de demonstrar o engajamento estão ligadas à comunicação referente ao Programa de Compliance e da aplicação adequada de uma política de consequências, demonstrando que a ética está acima de outros fatores como performance. Além disso, um Comitê de Compliance estabelecido irá reforçar o engajamento da alta administração, na medida em que aumenta a comunicação entre os executivos sobre o tema e facilita a tomada de decisões e ações”, aponta Mantoan.
O que não podemos esquecer é que sendo uma responsabilidade de todos os colaboradores, o programa de compliance traz desafios. No caso dos contadores, na visão de Mantoan, considerando os parâmetros do Decreto 8.420/2015 sobre a transparência nos registros contábeis, assim como controles adequados, é enriquecedor a atuação deles no time de compliance, pois possuem conhecimento específico do ambiente de controles, de rotinas fiscais e contábeis permitindo um “know-how” para identificar com maior facilidade riscos relacionados a fraudes contábeis. Além disso, quando analisam informações financeiras e contábeis, têm destreza em identificar fatores de riscos em transações, o que contribui para identificação de pagamentos indevidos, como os de suborno, facilitação ou corrupção, seja no curso de investigações reativas ou em análises preventivas.
“É importante que o contador documente sempre, de alguma forma, as irregularidades que observar e comunique aos setores responsáveis por receber denúncias. Caso seja um contador externo e perceber que crimes estão ocorrendo, tem o dever de se afastar imediatamente sob pena de poder ser considerado coautor ou partícipe dos crimes cometidos. Há diversos canais de denúncia dos órgãos federais, estaduais e municipais que podem e devem ser utilizados para que esses crimes sejam comunicados. Importante que todos saibam que a construção de uma sociedade mais justa depende das ações de cada um de nós”, finaliza Adalto Machado.
O evento 2° Circuito da Transparência, que você assiste na íntegra abaixo, faz parte de uma agenda de debates com muito conteúdo em prol das empresas e fomento das melhores práticas da ANEFAC em comemoração aos 25 anos do reconhecido Troféu Transparência – Prêmio ANEFAC.FIPECAFI. A entidade organizou uma série de ações que visam colaborar com a bandeira da transparência para o mercado, trazendo temáticas importantes que estão sendo discutidas por toda a sociedade e mercado com a transparência. Confira os conteúdos dos demais eventos.
1 ° Circuito da Transparência: Privacidade de dados: as empresas realmente estão mais seguras?
3 ° Circuito da Transparência: O que falta à transparência das questões ESG?
4 ° Circuito da Transparência: Compliance na Gestão de Terceiros