Ao longo da história, a humanidade atravessou diversas crises e todas passaram, assim como esta também irá. Uma das formas que, nós contabilistas, podemos contribuir é preparando informações contábeis de alta qualidade e transparente
Desde o início da crise deflagrada pela pandemia de Covid-19, diversos têm sidos os fóruns, debates e alertas sobre os possíveis impactos sobre as demonstrações financeiras das empresas no Brasil.
Nesse sentido, dentro do Programa de Doutorado Profissional em Controladoria e Finanças Empresarias da Universidade Mackenzie foi desenvolvida uma Matriz de Atenção, publicada na 20º edição da Revista do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo (CRCSP), em junho de 2020, que tinha por objetivo auxiliar os contadores na preparação das demonstrações financeiras anuais e/ou intermediárias, elaboradas dentro dos períodos em que os números refletem os impactos na economia causados pela pandemia.
Nesse artigo, apresentamos a aplicação prática, daquela Matriz de Atenção, relatando os principais impactos nas demonstrações financeiras, bem como os principais pontos de atenção.
Espera-se que este artigo possa ser útil para os contadores envolvidos na preparação das demonstrações contábeis, funcionando como uma evidência da aplicação prática da Matriz de Atenção, bem como ajudando os preparadores a defenderem seus pontos de vista em busca de maior transparência.
Apesar das informações trimestrais compreenderem de fato aproximadamente 20 dias de impactos da crise no território nacional, uma análise subsequente destes balanços já permitiu a captura de impactos nos principais grupos do balanço patrimonial e demonstração dos resultados, por meio de um estudo desenvolvido dentro do Programa de Doutorado Profissional em Controladoria e Finanças Empresariais da Universidade Mackenzie.
O estudo consistiu de uma análise qualitativa das informações trimestrais, a partir da lista divulgada pela Revista Exame: “100 Maiores Capital Aberto” – por “Valor de Mercado”, do ano de 2018, da qual exclui-se 39 empresas dos segmentos: financeiro, seguros, energia e telecomunicações, bem como outras oito, que fecharam capital e/ou não apresentaram informações financeiras trimestrais (ITRs). Portanto. A amostra compreendeu 53 companhias abertas, de 19 segmentos diferentes, conforme demonstrado a seguir:
Distribuição por segmento das companhias analisadas
O quadro acima demonstra que 17 das empresas analisadas, o que corresponde a 32% da amostra, utilizaram o prazo adicional concedido pela CVM para elaboração das ITRS do primeiro trimestre. Esta extensão foi importante para que as empresas e auditores pudessem se adaptar a necessidade de trabalho remoto, que se apresentou como um desafio adicional na preparação das informações.
Impactos nas Receitas 1T20 x 1T19 e 1X20 x Receitas Esperadas
Um dos primeiros aspectos, abordados na pesquisa, foi o desempenho das receitas líquidas, visto que uma redução significativa poderia desencadear uma série de análises e procedimentos adicionais a serem efetuados na elaboração das demonstrações financeiras interinas. O comportamento das receitas auferidas pelas companhias analisadas foi:
Fonte: Elaborado pelo autor, a partir das ITRS analisadas
Do total de empresas, 62% apresentaram crescimento nas receitas do 1T20, quando comparado com o 1T19. Entretanto, uma análise qualitativa das notas explicativas revelou que 55% das empresas analisadas alcançaram níveis de receitas inferiores aqueles esperados e projetados nos orçamentos internos, mesmo considerando que os impactos, causados pela Covid-19, foram mais perceptíveis a partir de 11 de março de 2020, quando foi elevada ao status de pandemia. Por outro lado, apenas 9% das empresas relataram que tiveram aumentos nos níveis de receitas relacionados a mudança no comportamento de seus clientes em função da Covid-19, enquanto 36% não fizeram nenhuma menção se a crise impactou o volume de receitas geradas.
Aplicações financeiras
A pandemia de Covid-19 impactou fortemente a economia brasileira, que já passa por um processo intenso de desaceleração, fazendo com que o risco país se eleve, que haja uma fuga de capital estrangeiro e como consequência pouco investimento. Todos esses impactos afetaram no período as taxas de inflação, taxas de juros, índice IBOVESPA, cotação de moedas estrangeiras, com o enfraquecimento do Real.
Das empresas na amostra, 17% relataram que avaliaram a possibilidade de terem incorridos em perdas em suas aplicações financeiras, como consequência da crise causada pela pandemia. Dessas, cinco relataram em seus ITRs que registraram perdas, as perdas somadas das empresas totalizaram R$1,9 bilhões, conforme demonstrado a seguir:
Contas a receber
Já no início da pandemia, a CVM por meio do ofício circular 03/2020, emitido em 16 de abril de 2020, e o IASB, por meio do alerta divulgado em 27 de março de 2020, enfatizaram aos preparadores e auditores de demonstrações financeira sobre a importância e obrigação das entidades em desenvolverem estimativas, com base nas melhores informações disponíveis, sobre eventos passados, condições atuais e previsões de condições econômicas, considerando os efeitos da Covid-19.
O alerta se fez valer e como resultado, a análise das informações trimestrais permitiu a constatação de que 68% das empresas analisadas afirmaram que avaliaram a razoabilidade e a necessidade de incrementar suas provisões para perda esperada, de acordo com o CPC48 – Instrumentos Financeiros, equivalente ao IFRS-9. Sendo que 25% efetuaram ajustes no aumento do valor dessas provisões, impactando os seus balanços em conjunto em um total de R$ 726,3 milhões.
Destaca-se ainda que houve empresas que afirmaram que revisaram suas estimativas em decorrência da crise causada pela pandemia e promoveram ajustes, mas não mencionaram o valor específico.
Apesar do alerta emitido, a partir desta análise, foi possível perceber que ainda não há um pleno entendimento na interpretação e aplicação da norma, mas destaca-se que 6% das empresas relataram que ainda precisam esperar que as perdas ocorressem, para revisar suas estimativas de perdas esperadas.
Estoques
Os estoques são ativos que podem sofrer impactos financeiros decorrente da mudança no comportamento dos consumidores exigidas pela pandemia, especialmente, para as empresas que não haviam desenvolvido ferramentas de vendas, por meio eletrônico, e também aquelas as quais os estoques tem prazo de validade para uso e consumo. Sendo, assim, necessário ajustes quando o custo pode se revelar superior aos valores de vendas, o estoque se tornar de baixo giro e/ou sofrer deterioração importante, entretanto, apenas 30% das empresas analisadas mencionaram que avaliaram a possibilidade de haver perdas a serem reconhecidas nesta rubrica do balanço.
Desses 30% apenas quatro empresas registraram algum tipo de perda e/ou mencionaram que deram tratamento ao custo anormal, comumente denominado ociosidade, como despesa do período incorrido, as perdas totais observadas correspondem a R$ 251,2 milhões.
Uma vez mais, identificou-se que algumas das empresas relataram que constituíram provisão para perdas nos estoques, em decorrência da queda no preço dos produtos comercializados devido à crise, entretanto, não divulgaram qual o valor.
Impostos a recuperar
Conforme mencionado no item dois, acima, 62% das empresas analisadas tiveram redução no nível de receitas auferidas, como também 55% relataram que as receitas foram inferiores aquelas esperadas para o período. Este dado é relevante no que diz respeito a estimativa de realização para os próximos doze meses dos saldos acumulados à título de impostos a recuperar. Apesar dessa informação ter sido capturada, somente 12% das empresas relataram que avaliaram a adequação da apresentação dos saldos, e somente duas delas divulgaram que promoveram reclassificações de corrente para não corrente, como consequência da mudança nas estimativas de receitas para o período subsequente.
O total das reclassificações efetuadas totalizou R$ 79 milhões.
Análise de recuperabilidade de tributos diferidos, imobilizado e intangíveis de vida útil definida
A análise de recuperabilidade destes ativos é, dependente da capacidade das empresas, rapidamente, atualizarem seus planos de negócios de curto e longo prazo para, com base na melhor informação disponível, refletir os impactos esperados que a crise cause em seus negócios.
Neste aspecto, ao menos que uma entidade já estivesse com um plano de negócios que refletisse fluxos de caixa descontados, próximos aos valores de livros destes ativos, dificilmente se espera que sejam reconhecidas perdas por recuperabilidade. O entendimento geral do mercado é que a crise é temporária e, por essa razão, não deveria comprometer severamente planos de longo prazos das empresas.
Verificou-se que 64% das empresas refizeram seus testes de impairment para avaliar a capacidade de recuperabilidade dos ativos. Agora, nenhuma delas registrou perdas como consequência desta avaliação.
Por outro lado, ressalta-se que a crise causada pela pandemia e a forma como essa afetou o cenário macroeconômico, se encaixa na situação descrita no parágrafo 12, item (b) do CPC01- Redução a Valor Recuperável de Ativos, equivalente ao IAS 36, que determina haver uma indicação para reavaliação da recuperabilidade, a saber: “(b) mudanças significativas, com efeito adverso sobre a entidade ocorreram durante o período, ou ocorrerão em futuro próximo, no ambiente tecnológico, de mercado, econômico ou legal, no qual a entidade opera ou no mercado para o qual o ativo é utilizado’ e, portanto, espera-se que a totalidade das companhias abertas atualizem seus testes de recuperabilidade destes ativos no 2T20.
No que tange aos tributos diferidos, a base para avaliação também será o plano de negócios, entretanto, para as companhias abertas brasileiras a norma vigente e aplicável, emanada pela CVM, é um pouco mais restritiva e limita o reconhecimento do ativo ao horizonte de 10 anos.
Fornecedores, impostos a recolher e obrigações trabalhistas
Dentre as empresas analisadas, somente 19% relataram que estão negociando extensão de prazos junto a fornecedores, apenas uma delas mencionou que tais renegociações não têm incidência de multas ou juros. Nesta perspectiva, o preparador das demonstrações financeiras deve ficar atento a materialidade dos montantes e avaliar a necessidade de divulgação.
No decorrer da pandemia, os governos, em suas diferentes esferas, vêm concedendo às empresas a possibilidade de parcelamentos e postergações de pagamentos, mas apenas 11% relataram que estão se apropriando destes benefícios.
Em relação às obrigações trabalhistas, ressalta-se que pode surgir uma grande complexidade, pois as opções de reduções de custos com pessoal são bastante abrangentes e podem variar, de acordo com o segmento, e até mesmo com os diversos sindicatos que uma mesma entidade possa estar relacionada.
A medida mais usual adotada foi a adesão a MP 936, que posteriormente foi convertida na Lei 14.020/20, e prevê a possibilidade de redução de jornada de trabalho e salário e até mesmo a suspensão temporária de trabalho. Adicionalmente, algumas empresas ofereçam programas de licença não remunerada e demissão voluntária, além de suspenderem a possibilidade de antecipação de 50% do 13º salário, por ocasião de férias, bem como do adicional de 1/3 do salário.
Todas essas mudanças apresentam uma grande complexidade no processamento da folha de pagamento, pois requerem rápidas mudanças nos parâmetros automatizados, exigindo um monitoramento mais próximos das provisões relacionadas. 30% das empresas relataram ter adotado alguma medida relacionada à redução de custos com pessoal.
Destaca-se ainda que uma das empresas do ramo de varejo relatou que 100% de suas lojas físicas estavam fechadas, mas não mencionou os impactos relacionados ao fato descrito.
Empréstimos e financiamentos
O grupo de empréstimos e financiamentos é um dos que apresenta maior risco em termos de complexidade e impactos em tempos de crise, normalmente, além das obrigações de desembolsos financeiros as empresas normalmente estão sujeitas a cláusulas restritivas relacionadas (covenants) a sua performance financeira e, caso não sejam atendidas (default), podem levar a uma antecipação da dívida contraída.
Tal situação pode se agravar se as empresas tiverem cláusulas de cross default em seus contratos de empréstimos e financiamentos, situação em que todas as dívidas contratadas com essa condição podem ser aceleradas.
Em tempos de crise, a situação de default se faz mais comum, e para que isso não comprometa até a continuidade da empresa, se faz necessário um acompanhamento contínuo dos covenants e negociações para obtenção antecipada de perdão (waiver) dos covenants.
A análise efetuada revelou que apenas uma das empresas analisadas quebrou covenants e precisou reclassificar a dívida relacionada à operação para o curto prazo, com a obtenção de waiver em período subsequente.
De acordo com as informações trimestrais analisadas, 55% das empresas divulgaram que tomaram medidas e ações relacionadas as suas posições de empréstimos e financiamentos, compreendendo: captações adicionais, monitoramento de covenants e/ou obtenção antecipada ou postecipada de waiver, conforme demonstrado a seguir:
Muito embora a crise tenha se intensificado já no final do trimestre, a análise revelou que 47% (26 empresas) das empresas analisadas, tomaram ações para reforçar o caixa para o enfrentamento da pandemia. As captações foram distribuídas entre os meses de março a junho, e totalizaram R$ 56,2 bilhões, conforme demonstrado a seguir:
A partir dos dados acima, infere-se a expectativa de fortes impactos e a rápida resposta dos administradores que de forma prudente tomaram as iniciativas necessárias para obterem recursos para enfrentar a severidade da situação.
As notas explicativas revelaram que mais 98% dos recursos captados foram por intermédio de operações privadas, com bondholders, debenturistas ou bancos.
Adicionalmente, identificou-se que foram efetuadas também, neste período, captações no montante de R$ 20,4 bilhões para outros fins e/ou não justificados pela administração como estando relacionadas a medidas de reforço do caixa para enfrentamento da crise.
Dividendos e juros sobre capital próprio
Notou-se que 21% das empresas promoveram mudanças nas políticas de pagamento, promovendo a suspensão, antecipação e até mesmo postergação na quitação de dividendos e juros sobre capital próprio. Em todos os casos, a justificativa foi a necessidade de reforço na liquidez para enfrentamento da crise.
Operações de hedge
Em situações de crise, operações desta natureza requerem monitoramento contínuo e podem se tornar ainda mais complexas e trazer impactos indesejáveis nos balanços contábeis. Com a queda na produtividade sendo experimentada por diversos setores, pode ocorrer situações de excesso de objeto de hedge contratado, e como requerido pelo CPC48 – Instrumentos Financeiros -, equivalente ao IFRS-9, acarretará na necessidade de desreconhecimento imediato da quantidade excedente. Normalmente estes impactos são significativos como demonstrado a seguir, observados em um única empresa da amostra analisada:
Incertezas, dúvidas substâncias e “going concern”
É fato que alguns segmentos da economia foram mais severamente afetados pela crise, como transportes aéreos e terrestres, viagens, turismo, educação etc. Para algumas empresas, a crise trouxe incertezas que leva a necessidade de avaliação da sua capacidade de continuidade operacional. Nesse contexto, 26% das empresas analisadas mencionaram que avaliaram no primeiro trimestre os impactos, que a crise causada pela pandemia, tiveram na sua capacidade de continuidade, ou seja “going concern”. Duas tiveram os relatórios de revisão trimestral emitidos por seus auditores com parágrafo de ênfase a respeito das incertezas e dúvidas substânciais sobre a sua capacidade de continuidade operacional no horizonte dos próximos doze meses, sendo uma delas do segmento de transporte aéreo e outra de educação.
Rentabilidade
Muito embora os impactos da Covid-19 tenham se intensificado em território brasileiro a partir de 11 de março de 2020, já no primeiro trimestre a rentabilidade das empresas foi bastante impactada, no trimestre, quando somados os resultados das empresas analisadas, totalizaram R$ 33,7 bilhões de prejuízo, comparado a R$ 1,4 milhões de lucro no 1T 19, uma deterioração expressiva de 2.507%. Um total de 36% auferiram prejuízo no 1T20, contraposto a 17% no ano anterior, como apresentado a seguir:
Resumo dos impactos identificados
A analise revelou que os ajustes no 1T20, decorrentes dos impactos causados pela crise deflagrada pela pandemia de Covid-19, se concentraram nos grupos de aplicações financeiras, contas a receber, estoques e hedges.
Um outro impacto, que deteriorou a performance das companhias analisadas, foi a variação cambial. Entretanto, vários são os fatores que impactam esta variável, mas inegavelmente a Covid-19 foi um deles.
Apresenta-se a seguir um resumo dos impactos identificados nas informações trimestrais das companhias analisadas:
Recomendações para a preparação dos ITRs do 2º trimestre
Em geral, todas as empresas prepararam notas específicas relatando de forma qualitativa os impactos e ações tomadas como consequência da crise, apenas uma das empresas analisadas, contrariando os requerimentos da CVM, não fez menção a pandemia e seus efeitos.
Todavia, os valores destes impactos nem sempre estavam de forma visível nas informações trimestrais, dificultando assim sua identificação e até mesmo havendo omissões das informações quantitativas.
Ainda há oportunidades de melhoria em termos de organização e conteúdo, sendo recomendado que os impactos qualitativos e quantitativos e ações tomadas pela administração estejam concentrados em uma única nota, com referência cruzada para onde seja necessário no restante do documento. Acreditamos que a transparência permitirá a diminuição da assimetria de informações entre as companhias e os usuários da informação contábil, além de permitir que os efeitos da crise, que tem caráter temporários, sejam da melhor forma possível segregados daquilo que na essência representa os fundamentos econômicos dos negócios.
Ao longo da história, a humanidade já atravessou diversas crises e todas elas passaram, assim como esta também irá passar, uma das formas que nós contabilistas podemos contribuir é preparando informações contábeis de alta qualidade e transparentes.
Artigo escrito pelos alunos do Programa de Doutorado Profissional em Controladoria e Finanças da Universidade Mackenzie, Carlos Poltronieri, que é sócio de Auditoria Consulcamp, e Renata Bandeira, que é diretora de controladoria e impostos da Gol Linhas Aéreas. Com revisão de José Carlos T. Oyadomari, que é professor doutor do programa de pós-graduação em Controladoria e Finanças Empresariais da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor em Ciências Contábeis pela FEA-USP e co-fundador do MA Institute.