Visão estratégica deve ser um movimento e não um processo, assim como é necessário empreender mudanças no curto, médio e longo prazo
Há 20, 30 anos atrás a estratégia buscava vantagem competitiva de longo prazo, os setores econômicos eram bem mais definidos e as mudanças tecnológicas aconteciam em um ritmo mais lento. Nos últimos 10 anos, na visão de André Ribeiro Coutinho, agente de inovação e transformação pela Symnetics, empreendedor em negócios de impacto e professor de pós-graduação em escolas de negócio como Fundação Instituto de Administração (FIA) e Fundação Dom Cabral, a complexidade e a incerteza tomaram conta do nosso contexto, as vantagens competitivas passaram a ser transitórias, a concorrência vem de lugares inesperados (startups ou você pode acordar um dia e descobrir que a Amazon é o teu novo concorrente) e a evolução tecnológica se tornou exponencial.
Para ele, pensar e agir estrategicamente se tornou ainda mais importante neste contexto, só que o modo de pensar e agir tem que mudar: as organizações devem ser mais adaptativas e responsivas a mudanças (por isso se fala tanto em ágil) e ao mesmo tempo fazer apostas futuras, pois diante da incerteza é menos arriscado inventar o futuro do que ficar refém de um futuro sobre o qual você não tem nenhum protagonismo. “A estratégia tem que se misturar com o design (ou seja com a criação) e com o empreendedorismo e ser mais experimental, testando hipóteses a todo instante. Estratégia na incerteza tem também que servir a algo maior, um propósito, por exemplo, de impacto positivo na sociedade para não ficar a reboque dos modismos e mudanças de curto prazo”, explica.
Garmin é um excelente exemplo de empresa que há 10 anos conseguiu se transformar enquanto negócio: de GPS (70% do faturamento em 2009) para relógios e wearables inteligentes. A Pepsico é um outro excelente exemplo, a CEO Indra Nooyi começou uma jornada de 15 anos atrás para reformular todos os produtos (com foco na nutrição) e cadeia de valor (como foco na inclusão produtiva), isso em linha com uma visão estratégica de impacto social. Hoje, estas duas empresas colhem os frutos de uma estratégia mais resiliente e responsável.
O desafio das empresas, segundo Coutinho, é basicamente dos seus gestores: 1º de percepção, o 2º de execução e o 3º de realinhamento. Ele explica: em relação à percepção, como tomar decisões informadas e ter algum discernimento em um mundo de mudanças aceleradas e fake news? Mesmo diante de tanta incerteza, é possível e necessário evitar algumas armadilhas como a da polarização dos dilemas: digital versus off-line, saúde versus economia (que é o dilema do coronavírus) e produto versus plataforma. Temos que buscar soluções integradoras e criativas (“E” e não “OU”) e polarizar não é uma estratégia inteligente. A Nike abriu diversas plataformas digitais para se relacionar com esportistas, no caso dos amantes de corridas e de futebol, e nem por isso deixou de oferecer artigos esportivos. E ele adverte: é preciso combater os vieses cognitivos ou os inconscientes – que são vícios do modo de pensar que impedem -. Como, por exemplo, os gestores de empreender (portanto tomarem mais risco) ou de trabalharem com mais diversidade (de pessoas), estes vieses precisam ser “quebrados” e os gestores “reeducados”.
Já em relação à execução, Coutinho acredita que temos um desafio de capacidade importante nas empresas para realizar seus projetos futuros, pois quase tudo agora envolve o digital ou o uso de dados. No Brasil já estão faltando programadores e cientistas de dados. E não só capacidade técnica, faltam gestores capazes de articular parcerias (por exemplo com startups) aplicando modelos ganha-ganha para viabilizar estes novos projetos. E por fim, de acordo com ele, o 3º desafio é de realinhamento, vivemos um chamado da sociedade para reinventar o capitalismo, ou seja, os gestores e suas empresas precisam orientar o negócio para os stakeholders (diversas partes interessadas) e não somente para shareholders (acionistas), e portanto trabalhar mais fortemente o impacto (positivo) dos negócios na sociedade e no meio ambiente, só para citar aqui duas agendas urgentes, uma de mudanças climáticas e outra de desigualdade social, que devem ser enfrentadas pelas empresas, pois os governos estão fracassando neste sentido. No Brasil a Natura e a Magazine Luiza são exemplos de empresas que se encaixam nisto.
Existe um campo de oportunidade crescente para negócios digitais, ou seja, que se utilizam de digitais e tornam a experiência de consumo mais simples (descomplicada), inteligente, conveniente e barata para as pessoas. “Aqui temos dezenas de exemplos de empresas que prosperaram na pandemia pelo simples fato de oferecerem uma experiência imbatível pelo digital. E, também, os negócios inclusivos, que operam com o propósito de incluir pessoas (em sentido amplo) na produção, no consumo e no trabalho, vale mencionar o modelo das cooperativas agrícolas e cooperativas de crédito (como Sicredi e Sicoob no Brasil), que são modelos de negócio de muito sucesso, estão crescendo seguindo estes princípios. De maneira geral pela falta de investimento e política pública, os governos deixaram lacunas importantes em áreas como saúde (hospitais e vacinas) e infraestrutura (saneamento e mobilidade), que se transformam em oportunidades de negócio, inclusive em parceria com o governo (nas chamadas PPPs-parcerias público privada). Acredito nos negócios que devem surgir a partir da economia circular, ou seja, da regeneração e transformação de recursos, em um país diversificado e abrangente como o Brasil, o mercado é gigantesco e está apenas no começo”, alerta o especialista.
Visão estratégica deve ser movimento e não um processo
Quando começou a trabalhar com inovação há 15 anos, a visão era de que instituindo um processo como existe o processo orçamentário, o processo de qualidade, a inovação iria se desenvolver na empresa, mas o que André Coutinho vê hoje é que o processo é apenas uma parte (pequena) da inovação e acaba se confundindo com pesquisa e desenvolvimento, por isso prefere usar a palavra movimento e não processo, pois de fato a inovação parte de CPFs e não de CNPJs, que vão articulando e movimentando pessoas, tecnologias, parcerias e recursos financeiros para fazer diferente, muitas vezes contrariando o negócio principal e o que foi sucesso no passado. Na opinião dele, a criatividade pode ser estimulada projetando e disponibilizando ambientes físicos e virtuais, convidando a diversidade para estes ambientes (empreendedores, pesquisadores, designers, programadores, entre outros perfis), oferecendo estrutura (orçamento, governança, incentivos), mas tudo isto deve ser direcionado por uma visão estratégica futura.
E relembra: há alguns anos a Unilever destacou uma equipe de cinco profissionais multidisciplinares funcionando como se fosse uma startup interna na empresa e após um ano lançaram uma nova marca e linha de produtos naturais chamada ApotheCare. Se este mesmo desafio fosse lançado nas estruturas tradicionais da Unilever, eles acreditam que precisariam de 20 pessoas e demoraria 2,5 anos para isto acontecer. “Quanto maior a disrupção, maior a necessidade de você destacar estruturas separadas para a inovação acontecer, como é o caso da Marcopolo Next ou Embraer X, aqui no Brasil, ou a Googlex X ou Amazon Lab126, nos Estados Unidos, pois é tudo muito diferente (processos, pessoas e tecnologias) e você corre o risco de travar a inovação”.
Dá para pensar em inovação hoje em dia sem tecnologia? Coutinho avalia que existem inovações importantes acontecendo com mudanças em conceito ou no modelo de negócio sem, necessariamente, mudar a tecnologia ou o produto, mas diz que de maneira geral toda inovação embarca alguma tecnologia existente ou emergente, sobretudo a digital e com o uso de dados. A Philips, que é uma empresa holandesa e adota a economia circular, está oferecendo um serviço de iluminação (pay per lux ou light as a service), que é uma ‘servitização’ do produto ao invés de vender lâmpada. Da mesma forma, estão manufaturando equipamentos de diagnóstico, usados para o cliente (no caso um hospital ou clínica), ou vendendo equipamentos modulares de ressonância, assim o cliente não precisa ficar comprando equipamento novo. De qualquer forma, a ‘servitização’, que é uma forte tendência na indústria (já que o setor de serviços, se já não está, deve ficar praticamente 100% digital), precisa do digital e dos dados para funcionar.
Empreender mudanças em cinco passos
No seu último livro Design Estratégico (editora Altabooks), Coutinho traz cinco características necessárias para as pessoas que querem empreender mudanças
1ª é a desobediência responsável, que é basicamente o hackeamento dos sistemas e corporações, talvez o melhor exemplo recente é o Elon Musk com a Space X, que hackeou o monopólio da Nasa e conseguiu fazer mais, melhor e mais barato em apenas 10 anos – se você ficar muito focado nas regras atuais não faz nada, por isso o hacker busca caminhos mais curtos, quebrando regras, ou lança sua inovação junto com a regra, como é o caso do drone de delivery da Amazon, em 2012 não existia legislação de espaço aéreo para drones, nem por isso Jeff Bezos deixou de ir adiante com o projeto – tem também a entrada do Uber nas cidades “sem pedir permissão”, eles apenas liberaram a plataforma para os passageiros e saíram cadastrando os motoristas, dois ou três anos depois, como aconteceu no município de São Paulo, as cidades resolvem regulamentar o aplicativo.
2ª é a perda aceitável, que é o limite do sacrifício, do risco envolvido do (intra)empreendedor neste processo;
3ª é a experimentação em série, você tem que trabalhar com um portfólio de experimentos e se for muito eficiente de cada 10 apostas, três vão dar muito certo;
4ª é articulação global em rede, buscar pessoas, tecnologias sem fronteiras (em qualquer lugar do planeta) e tratar as pessoas como parceiros e não como funcionários (a Imbev e a Starbucks chamam seus colaboradores de associados e não de empregados) isto faz toda a diferença;
5ª é o propósito com liberdade, você precisa imprimir uma visão de mundo em suas ações com autenticidade. Se a agenda de inovação e transformação é crucial para a sobrevivência de uma organização, o grande problema das corporações na atualidade é reter pessoas que pensam e agem desta forma. Normalmente, o executivo convencional não pensa e age assim então ou ele vai barrar pessoas, e estas pessoas vão embora, ou se ele não mudar será substituído por pessoas com este perfil.
Para concluir, neste cenário, os cuidados mais importantes ao olhar para o presente e o futuro, no curto, médio e longo prazo em termos de estratégias, Coutinho entende, que no:
Curto prazo: continua a máxima de que cash is king e, diante da crise econômica e desafios gerados pela pandemia, é preciso adaptar a organização, flexibilizando a estrutura e os contratos, tornando o modelo de negócio mais leve e menos dependente de ativos (sempre que possível), além de investir forte no digital.
Médio prazo: a empresa precisa reconfigurar o negócio tornando o modelo à prova de futuro, ou seja, ser resiliente diante de novas crises, que certamente vão surgir. Quando não for de saúde, será política, econômica ou ambiental, para quem duvidava do V.U.C.A. (acrônimo de volatilidade, incerteza, complexidade e ambíguo), estamos no meio da tempestade.
Longo prazo: é preciso realizar diversos experimentos de futuro, muitos deles fora do negócio principal, ou seja, empreender pensando em 5, 10 ou 15 anos adiante como forma de assegurar uma diversificação mínima, expansão do negócio principal e proteção do valor ao acionista e demais stakeholders.